Estrutura em condições totalmente precárias!
Dezembro de 2007.
Já era a segunda semana do último mês do ano e os adolescentes continuavam vindo pro Projeto!
Ano letivo encerrado, escolas fechadas - quem passou, passou; quem não passou, não passa mais - férias pra Geral! Menos pro Educador!
Da Fase II, né? Porque as crianças da Fase I, de 7 a 11 anos, também já tinham dado linha desde o fim de novembro e as Educadoras já tavam a mil por hora no planejamento das atividades pro ano seguinte...
Já os Mano e as Mina...
Frequência de só 100%, fidelidade absoluta, comprometimento total! Vinha só todo mundo, só todo santo dia!
Turma da Manhã com 28 Anjinhas e Anjinhos e Turma da Tarde com 33 Expriminhas e Exprimões, pra uma sala com capacidade máxima pra 25 alunos, estourando os limites de conforto e produtividade.
Ainda mais com aquele calorzinho aconchegante de 40 graus na sombra, típico de Prudentexas, na transição da primavera pro verão!
Aquele, em que a gente sente que tá dentro de uma Air-Fryer: é bafo quente que vem de todos os lados!
Então imagina essa galera toda junta, por cerca de três horas, num ambiente com uma estrutura em condições totalmente precárias, extravasando tudo e mais tudo que é hormônio misturado com suor, pra ser diluído por um único ventilador de teto, passando do terceiro pro quarto ciclo de vida útil - no popular, da terceira pra quarta reencarnação - numa rotação de cinco voltas por minuto...
É o puro creme do calor humano!
- Rapaz! E eles não furam um só dia!
O Educador realmente não conseguia encontrar uma explicação plausível pra tal fenômeno!
A comida da Zelma? Podia até ser! A comida da Zelma era fora da curva mesmo! Mas não podia ser só a comida da Zelma!
Se fosse só pra comer mesmo, ninguém ficaria pras atividades em sala! Ainda mais naquela sala, com uma estrutura em condições totalmente precárias, com um ventilador, passando da terceira pra quarta reencarnação, numa rotação de cinco voltas por minuto...
O café? De repente o pessoal só encarava as viagens do Educador pra esperar o lanche da tarde! Será? Só que não!
Aguentar a resenha pra ganhar bolacha de maisena e Ki-suco? É um custo-benefício extremamente desvantajoso...
Então só podia ser por causa do Espaço Próprio! Aquele momento, depois da atividade principal planejada e desenvolvida, em que os adolescentes é que mandavam no movimento!
Os meninos iam jogar bola no campinho - mesmo naquele calorzinho aconchegante de 40 graus na sombra, típico de Prudentexas, na transição da primavera pro verão - e as meninas iam pro fundo da sala - aquela sala, ela mesma, com uma estrutura em condições totalmente precárias - pra dançar em volta da mesinha onde ficava aquele rádio-gravador com FM, CD Player e dois decks pra fita cassete! O puro creme da mais avançada tecnologia...
- É, não pode ser só por isso que eles venham em peso pro Projeto! Quer saber? Bora perguntar diretamente pros interessados...
- Amanhã vâmo ter um papo reto! Amanhã vou saber a real!
O dia seguinte amanheceu no puro creme do temporal! Daqueles! Pacote completo: raio, trovão, vendaval, granizo e água que cai do céu! E dá-lhe água que cai do céu!
E entra pelas telhas quebradas - cuja troca já tá pedida há mais de seis meses - do prédio com a estrutura em condições totalmente precárias!
E não escoa pelas calhas, cuja limpeza já tá pedida há mais de seis meses - do prédio com a estrutura em condições totalmente precárias!
E encharca o forro do teto do prédio com a estrutura em condições totalmente precárias! E desce pelas paredes e inunda a Sala da Fase II, do prédio com estrutura em condições totalmente precárias, do Projeto Criança Cidadã! Em pleno 2007! Em pleno Século XXI!
E o pior é que não tinha nem dois anos que o CRAS tinha sido reformado! Justamente pra dar um talento no prédio que tava com a estrutura em condições totalmente precárias!
E não foi coisa pequena, não! Pelo menos não era pra ter sido! Financiamento pelo BNDES! Quase um ano de obras! Quase um ano de CRAS fechado!
Ah, vá! Tá achando que o Projeto ficou parado esse tempo todo por causa da obra?
De jeito nenhum! O CRAS ficou fechado, mas o Projeto não deixou de funcionar um só dia!
As crianças eram levadas pro SESI do Parque Furquim todo dia, pelo ônibus da Secretaria, pra fazer lá tudo o que rolava no Projeto, em salas gentilmente cedidas pra desenvolver os conteúdos temáticos e, é claro, em todas as instalações do complexo esportivo - ginásio, campo, quadras, piscina - pras atividades físicas, lúdicas e de lazer! Sem contar com aquele almoço tudo e mais tudo de bom da escola...
É que o SESI e Prefeitura de Prudente já tinham um convênio pra atender as crianças e adolescentes dos CRAS Alexandrina, Cambuci e Nochete no clube, duas vezes por semana.
Então, pra não deixar a meninada do Nochete no vácuo, o acolhimento foi estendido pra todos os dias e pra todas as dependências da Unidade.
Já os adolescentes foram alojados no Salão São Martinho, no Vale das Parreiras, também gentilmente cedido pela Paróquia Santa Rita de Cássia.
Não era um SESI, mas era o que tinha! E tava era bom demais! Porque ou era ali ou não era em lugar nenhum!
E cadê que alguém desistiu? E cadê que alguém abandonou? Todo mundo vindo todo santo dia! E atividade rolando todo santo dia! Educador e adolescentes moendo a farinha! Só todo santo dia...
Todo mundo no puro creme da esperança de finalmente poder ter um espaço decente, saudável, seguro e confortável pra chamar de seu...
Ah, pensa numa expectativa! O projeto da reforma do CRAS previa a construção de duas salas novinhas, zero quilômetro, de alvenaria, com laje e tudo, pro atendimento das 50 crianças, de 7 a 11 anos da Fase I.
É que as duas Salas da Fase I eram de madeira, com forro de compensado, com um estrutura que se apresentava, já há muito tempo - adivinha só? - em condições totalmente precárias!
Ah, a Sala da Fase II, a dos adolescentes, que já era de tijolo, também tava contemplada com o reforço das paredes pra poder sustentar a tão sonhada laje, além da troca do piso - troca não, que a sala, na verdade, não tinha era piso nenhum - e com a substituição de todo o telhado, pra acabar de vez com as infiltrações de água da chuva e com a umidade.
E o Refeitório, então? Ampliação do espaço físico, mesas e bancos novos, colocação de piso, revestimento de azulejos nas paredes...
Só que o tempo foi passando! E a confiança foi diminuindo, na proporção do atraso das obras! A tal da reforma não chegava ao fim!
Pressão das famílias, crianças e adolescentes no limite da exaustão, por conta da rotina acelerada de um vai-e-vem que desgastava demais a molecada e acabava prejudicando o rendimento nas atividades do Projeto e o desempenho escolar!
Tempos difíceis! Fase complicada!
Até que acabou! Anunciaram o fim da reforma e a reinauguração do CRAS!
- Oh, Glória! Agora vai!
Só que não!
Pensa no puro creme da decepção!
As Salas da Fase I, de madeira, não foram derrubadas pra serem reconstruídas em alvenaria! Tavam lá, na mesma situação - em condições totalmente precárias - de antes da reforma! Só foram pintadas por fora e nada mais!
Nada de diferente com a Sala da Fase II também! As mesmas paredes, sem laje, sem piso! Só aquela pintura externa pra fazer uma vitrine! Pra causar aquela impressão, em quem passava pela rua, de que o CRAS tava numa casa nova...
E o Refeitório, então? Sem ampliação, sem mesas nem bancos novos, sem piso nem azulejo! Apenas uma demão de tinta no chão que, depois de duas semanas, já tava sem cor novamente...
Pois é!
Um prédio fechado por quase um ano pra nada! Pra continuar em condições totalmente precárias depois de uma reforma milionária!
Óbvio que teve indignação! Claro que teve questionamento! Evidente que teve reclamação!
Das crianças, dos adolescentes, das famílias, dos Educadores, da Assistente Social, da Cozinheira, da Serviços Gerais, de todo mundo!
Todo mundo muito pistola com o que tinha acontecido! Na verdade, todo mundo muito pistola com o que não tinha acontecido! Todo mundo muito pistola com a reforma de mentirinha!
Rolou até Abaixo-assinado! O pessoal do bairro se uniu e foi pro pau! Conseguiram mais de mil assinaturas! Protocolaram na Prefeitura!
Rolou até imprensa! A reforma fake virou notícia! Na TV Divisa, na Rádio Mercantil, no Jornal O Isento!
O que é que deu?
Deu que, não se sabe como - ou se sabe muito bem como - as autoridades municipais deram um jeitinho de convencer todas as autoridades federais de que os recursos tinham sido utilizados com probidade, com eficiência, com economicidade, com respeito a tudo e mais tudo que é princípio que a Administração Pública tem que observar e cumprir!
E teve até vistoria in loco, pelos Auditores do BNDES, pra comprovar que tudo o que constava do projeto da reforma tinha sido efetivamente realizado!
Só não se sabe qual foi o projeto de reforma que as autoridades municipais apresentaram pras autoridades federais, né?
O curioso - ou melhor, o furioso - é que, no dia da tal visita, tava rolando cineminha na Sala da Fase II!
E a Secretária Municipal da Assistência Social, toda pomposa, aproveitou pra mostrar pros Agentes de Fiscalização os equipamentos que haviam sido comprados com a grana que sobrou da obra!
Pensa no puro creme da cara de pau! Os tais dos equipamentos eram a televisão e o DVD Player! Que eram do Educador!
Sim, os aparelhos pertenciam ao Educador! Ele trazia de casa quando trabalhava filme com os adolescentes! E ainda passava na Locadora no dia anterior pra alugar o DVD! Tudo do próprio bolso!
E não é que a infeliz fez a maior ostentação com os bens que eram do Educador?
- É o puro creme da sacanagem!
E o que mais deu?
Deu que, nem dois anos se passaram e a água da chuva continuava entrando pelos vãos das telhas quebradas, continuava se acumulando nas calhas entupidas por falta de limpeza, continuava encharcando o forro do teto e continuava escorrendo pelas paredes do prédio em condições totalmente precárias...
Fazer o quê?
Aproveitar que hoje não vai aparecer ninguém mesmo e secar esse pântano!
- Dona Josélia! Traz os rodos pra gente jogar esse aguaceiro pra fora da sala!
- Precisando de ajuda aí, Professor?
- Ah, não! Não boto uma fé! Não é possível! Agora vocês se superaram!
E não é que, do nada, tavam na porta da Sala da Fase II, do prédio de estrutura em condições totalmente precárias, todos - só todos - os 28 adolescentes da Turma da Manhã do Projeto Criança Cidadã!
- Manda a gente embora não, Professor?
- Passa os rodinho aí, pega os pano e os balde, que a gente seca essa bagaça num minuto!
- Deixa a gente ficar, Professor!
Aí não teve jeito! O Educador até tentou segurar, mas a emoção transbordou!
E aí o Educador até tentou disfarçar, mas todo mundo viu que a água que correu pelo rosto não era a que vinha do teto da Sala da Fase II, do prédio com a estrutura em condições totalmente precárias...
Aí foi a estrutura do Educador que ficou totalmente precária! Ah, tinha muito sentimento envolvido ali!
- É o seguinte, pessoal! Vocês tão vendo que a estrutura desse prédio tá em condições totalmente precárias, né? Não tem como a gente ficar aqui dentro! Se de repente esse teto desaba, morre todo mundo! A gente vai ter que chamar a Defesa Civil pra vistoriar o telhado e avaliar a gravidade dos danos...
- Aí ferrou, Professor! Eles vão sacar na hora que a casa tá caindo mesmo! Todo mundo tá vendo que esse barraco tá com uma estrutura em condições totalmente...
- Precárias, Perfume! Condições totalmente precárias...
- É, isso mesmo! Então, aí eles vão ver que não tá tendo condição nenhuma de rolar nada aqui e vão inter...
- Interditar, Perfume! Vão interditar o prédio...
- É, essa parada aí! Vão mandar fechar a lojinha! E aí já era o Projeto!
- Menos mal que tâmo em dezembro, pessoal! A Prefeitura vai ter uns quarenta dias pra fazer as obras necessárias e deixar tudo em ordem pra gente começar as atividades do ano que vem com conforto e segurança...
- Mas e a gente, fica como?
- Meus queridos! Tâmo na segunda semana de dezembro! O ano é que já era! Acabou, gente! Vocês ficam em casa! Vocês tem que voltar pra casa! Afinal de contas, por que é que vocês todos saíram de casa numa tempestade dessas, pra vir pro Projeto?
- Porque a gente gosta do Projeto, Professor! A gente gosta e pronto! Simples assim...
- Eu não vou embora! Ainda não veio ninguém aqui pra ver que a estrutura do prédio tá em condições totalmente precárias!
- É isso mesmo! O Projeto ainda não tá interditado!
- Bora puxar essa água, Professor!
- Bora desenrolar a atividade! O que é que tem pra hoje?
E aí vem a parte da história que ninguém - mas ninguém mesmo - vai acreditar!
Porque é lógico que qualquer pessoa com o mínimo de bom senso não permitiria - de jeito nenhum - que quase trinta adolescentes permanecessem na Sala da Fase II, do prédio com estrutura em condições totalmente precárias, inundada por uma cachoeira que entrou pelas telhas quebradas, não escoou pelas calhas entupidas e encharcou o forro do teto, escorrendo pelas paredes!
E ainda ficaria junto, fazendo atividade, como se nada demais tivesse acontecendo, ignorando o perigo iminente de desabamento e até de incêndio por curto da instalação elétrica, também em condições totalmente precárias!
Pois é!
Ninguém com o mínimo de bom senso jamais cogitaria a possibilidade de colocar em risco a vida de quase trinta adolescentes e a própria também!
Pois é!
Acreditem ou não, Senhoras e Senhores! A real foi que o Educador meteu o lôco! Topou a parada! E abraçou a responsa!
- Então, pessoal! Vâmo pensar junto um pouquinho: a chuva até que já diminuiu bem, só que ainda tá pesada, né? Não tem como mandar vocês pra casa agora! Mas também já não tá mais descendo água pelas paredes. Sinal de que o perrengue maior já passou! Vou pedir pra Lupécia ligar pra Defesa Civil e, até eles chegarem, a gente fica esperando aqui mesmo!
Ah, pensa no puro creme do toba na mão...
- Fala sério, Professor! Então a gente pode ficar?
- Vâmo ficar todo mundo junto aqui! E todo mundo bem ligado! Se rolar algum barulho diferente, cheiro de fio queimado, qualquer coisa que não seja ou que não pareça normal ou se a chuva pegar mais forte e a sala começar a alagar de novo, a gente corre lá pra fora!
- Já é, Mano!
- É por isso que eu gosto desse Projeto, Brô!
- Aê, Professor! Vou mandar uma letra aqui na vera, do fundo da alma: se o Projeto abrir no Natal e no Ano-Novo a gente cola, tá ligado?
- Pelo amor de Deus, Tá Ligado! Misericórdia, irmão! Quer saber? Eu abandono! Desisto de tentar entender porque vocês são tão fissurados nesse Projeto!
A Defesa Civil veio!
Inspecionaram todas as salas, subiram no telhado, constataram as telhas quebradas, as calhas entupidas, o teto encharcado, as infiltrações pelas paredes, a umidade...
Mas em nenhum momento consideraram a necessidade de determinar a interdição do prédio em razão da estrutura se encontrar em condições totalmente precárias!
- Vamos pedir pro pessoal da Prudenco trocar as telhas quebradas e fazer a limpeza das calhas! As dependências podem continuar a ser utilizadas regularmente...
Depois de um tempo a gente descobriu que o engenheiro da Defesa Civil era o mesmo que havia sido responsável pelo projeto da reforma!
Lógico que o cidadão não ia condenar uma obra assinada por ele mesmo, finalizada há menos de dois anos, né?
Pois é!
Vida que segue...
- Aê, Professor! Barraco liberado! Vâmo fazer o quê essa semana?
O Educador olhou pra parede da Sala da Fase II, tingida por infinitos pontos e manchas, de formas e tamanhos variados, resultantes da mistura de água e sujeira que havia escorrido do teto do prédio com estrutura em condições totalmente precárias.
- Essa semana a gente vai pintar! Essa semana a gente vai pintar tudo e mais tudo!
- E qual vai ser o pintor que a gente vai contextualizar, Professor?
Os adolescentes adoravam falar "contextualizar" porque a proposta do trabalho de arte do Educador era transformar todos eles em "Fauves", "Feras Contextualistas".
E o mais maneiro é que eles entendiam muito, mas muito bem, mas bem demais mesmo, do que falavam...
- Pollock, meus queridos! Essa semana a gente vai pintar Pollock!
Continua semana que vem...
👏👏👏
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