Merda! Muita merda! Mas muita merda mesmo!

 






Terça-feira.

- Expriminhas e Exprimões, esse é o Juliano! O Juliano é ator! Da Companhia de Teatro Mistorintófoles! Ele é o cara que vai dar todo o suporte pra vocês arrebentarem com tudo e mais tudo na Mostra de Teatro!

Ah, os adolescentes foram logo de cara com a cara do Juliano! As duas turmas! Deu liga de primeira! Cara muito do bem! Coração enorme! Excelente profissional! Generoso e atencioso! Ganhou a confiança, o respeito e a admiração da galera num piscar de olhos! 

Essencial pra quem tinha só sessenta dias pra entregar dois espetáculos estrelados por meninas e meninos que só tinham entrado em um teatro uma única vez na vida...

- Então, pessoal! Bora começar pelo começo! A gente precisa definir, assim, pra agora, as peças que a gente vai encenar! E vou passar essa bola pra vocês: vocês tem alguma ideia sobre algum tema que vocês gostariam de abordar?

A turma da manhã - doze e treze - mais animada, mais elétrica, mais espevitada, mais pilhada, fechou que queria mesmo era diversão! Naquele grau de fazer a peça rindo pra fazer todo mundo rir junto!

- Ah, fala sério! Parece coisa mandada! Porque não faz nem duas semanas que terminei de rascunhar uma comédia bem do jeito que vocês tão pensando em fazer! Romeu e Julieta!

- Opa, parou! Parou tudo, Juliano! Romeu e Julieta? Romeu e Julieta não tem nada a ver com comédia, tá ligado?

- Não é aquela fita que os dois se amam, mas são proibidos de ficar juntos por causa de treta de família e acabam morrendo no fim? Qual que é a graça da parada, mano?

- Calma, pessoal! Muita calma nessa hora! Essa Romeu e Julieta que vocês vão fazer é muito diferente da do Shakespeare! Na verdade, o que as duas peças tem em comum é só o nome mesmo! Porque a nossa Romeu e Julieta é um velório!
 
- Aí, vai vendo só! Velório, tio! Tragédia do mesmo tanto! Qual é, Juliano! A gente quer alegria! A gente quer fazer festa!

- E é o que vocês vão ter e fazer! Alegria e festa! Podem confiar! Porque a peça é uma bagunça do começo ao fim: o Romeu é o falecido que tá sendo velado pela família e amigos! Até aí nada de novo, nada de extraordinário: aquele clima pesadaço, muita tristeza, muito choro, muito "Meus sentimentos", muito "Deus sabe o que faz", até que aparece uma outra família pra se despedir! E aí começam as pataquadas! Vâmo dar uma lida no texto? E aí vocês decidem se vale a pena...

Aprovadíssimo! Pra rir, pra gargalhar, pra chorar, pra doer o maxilar!

Falas curtas, ritmo acelerado, sacadas irônicas, humor inteligente, mesclado com todos os clichês de encenação de velório zoado: a briga das duas famílias vai ficando tão insuportável que descamba ao extremo de fazer o morto voltar à vida, se levantar do caixão e botar todo mundo pra correr pra poder voltar a descansar em paz!

E a cereja do bolo, então: teve caixão de verdade na peça! A Dona Neuza, sogra do Educador, era comadre do dono da Funerária Pruden-Paz! E aí não foi nada difícil conseguir uma peça de mostruário, "emprestada", pra dar aquele realismo ao espetáculo!

E o pior foi que o tal do "paletó de madeira" era tão confortável, mas tão confortável, que o João Vicente, que "fez" o falecido Romeu, apagava geral durante os ensaios!

Pois é! O menino tinha que ficar lá, deitado, esticado, imóvel - morto, né? - durante quase toda a peça, pra acordar do sono eterno só no finalzinho, pagar uma bronca pra geral e deitar de novo!

E não teve um ensaio em que o João conseguiu ficar acordado! Virou até bordão:

- O Jão dormiu no caixão!

Aí, pra não acontecer do morto continuar morto no único momento em que precisava estar vivo - simplesmente o clímax da peça - alguém sempre tinha que dar umas batidinhas com a mão na lateral do caixão pra despertar o Romeu...

Então, né? Se a turma da manhã queria diversão, fazer a peça rindo pra fazer todo mundo rir junto, fazer rindo ficou tão natural que não tinha como não rir junto...

Já com a galera da tarde a pegada foi mais pesada: pessoal mais maduro - catorze e quinze - mais consciente, mais engajado, mais crítico, mais focado no "Bora lá com tudo e mais tudo, que a gente vai mudar esse mundo", que comprou na hora a ideia do Tá Ligado?

- Racismo, Juliano! A gente quer bater uma real de racismo!

É que ainda tava bem vivo no coração de todo mundo o episódio racista, protagonizado pela Dona Destra, a avó da Ana Laís - a Aninha Tipo Assim - que, ao descobrir que a neta tava namorando o Wescley - o Tá Ligado? - perdeu a linha geral e acabou na Delegacia, porque não aceitava, de jeito nenhum, a ideia de um dia poder vir a ser bisavó de negrinhos que pulariam pela casa feito um bando de macaquinhos...

- Racismo, Juliano! A gente precisa mandar uma letra sobre racismo, tá ligado?

- Ah, mas agora é certeza que é coisa mandada mesmo! Semana passada vi um espetáculo que é a cara da sua sugestão, Wescley! O nome é "Isso é racismo!"

São oito esquetes que retratam atitudes racistas que, infelizmente, em pleno século vinte e um, ainda rolam no cotidiano, na família, no trabalho, no mercado, no clube, na escola, na igreja, no shopping, na rua...

Mas se preparem! Porque vocês vão precisar fazer um exercício de inversão: os personagens racistas são os negros e as vítimas são os brancos!

- Ah, qual é? Racismo ao contrário? Esse lance aí não vai dar mais força pra quem é racista?

- Muito pelo contrário, Witney! A ideia aqui é chocar! Provocar uma reflexão! Focar no que o racismo tem de pior, de mais abjeto, de mais hediondo, de mais cruel: a total ausência de empatia! 

- Seres humanos que se consideram "superiores" a outros seres humanos, que escravizam, exploram, abusam, humilham e matam outros seres humanos, "legitimados" por fundamentos e critérios que hoje todo mundo sabe que não tem nenhuma validade pra justificar a diferenciação de uns e outros!

- Eita, que da hora essa resenha! Tô sacando qual é, Juliano! É causar geral pra fazer todo mundo pensar o contrário e entender que não tem nada a ver o branco e o preto serem tratados diferente só porque um é branco e o outro é preto!

- E tem mais! Já que é pra abrir as mentes com o impacto da inversão de papéis, a gente ainda vai dar mais um toque e mandar, ao mesmo tempo, uma provocação pra plateia: a cor da pele dos personagens que vocês vão interpretar não será necessariamente a cor da pele de vocês!

- Vixi, mano! Agora embaçou tudo! Desenrola aí,  Juliano! Que essa não deu pra copiar, não!

- É o seguinte, pessoal! Não vai ser a cor da pele dos atores que vai determinar a cor da pele dos personagens! A cor da pele dos personagens vai ser identificada pelo figurino de vocês! Camisetas brancas e pretas: a cor da camiseta é que vai determinar a cor da pele dos personagens!

- Ah, agora castelei! Mas será que quem tiver assistindo vai castelar sem ter essa explicação?

- Aí é que tão o toque e a provocação, Berenice! É aquela coisa: entendedores que entendam! Mas no fim todo mundo vai compreender, porque a gente vai fechar o espetáculo com Elza Soares:

"A carne mais barata do mercado é a carne negra!"

- Fechou, meu parceiro! Vâmo detonar com tudo e mais tudo!

- Bora começar, então!

Ah, pensa num bonde de adolescentes que comprou uma ideia com força! E ralou pra fazer acontecer: leitura e mais leitura da peça, ensaio e mais ensaio, estudo das técnicas, postura, expressão, gestual, voz, posicionamento, marcação, ocupação do palco, interação com a plateia, leitura e mais leitura da peça, ensaio e mais ensaio...

E foi além...

- Aê, Professor! A gente tem um pedido pra fazer pra você, mano! O Juliano vem de terça e quinta pra ensaiar com a gente! Mas a gente quer ver com você se você topa ensaiar com a gente na segunda e na quarta também...

E o Educador teve como negar? E já dá pra imaginar qual foi o resultado de toda essa dedicação e disciplina, né? Faltando uma semana pra apresentação, as duas peças tavam redondinhas, perfeitas, prontas!

Mas, como toda conquista fica mais valorosa quando a batalha é mais ferrenha, é claro que ainda viriam as adversidades, os imprevistos, os sustos e, com eles, a incerteza e o medo de tudo dar ruim...

Segunda-feira. Véspera das peças.

- Pessoal, tem matéria sobre vocês no site da Prefeitura! Olha só...


Ah, só alegria! Maior alto-astral! Todo mundo com a autoestima lá na estratosfera! 

Mais aí veio a notícia...

Mensagem do Juliano. O Educador leu pra todo mundo:

"Rapaz, tô no hospital! Acordei com uma dor nas costas terrível! Pedra no rim! Desceu pro canal! Vou ser operado agora à tarde! Você vai ter que dirigir os meninos! Mas fica tranquilo! Eles tão na ponta dos cascos! Você sabe muito bem! Tenho certeza que vão fazer excelentes apresentações! E não esquece da merda..."

- Que merda, hein?

- Anjinhas e Anjinhos! Se não tem outro jeito, bora do jeito que tá, bora do jeito que dá...

- Ô, Professor! Que parada é essa aí da merda que o Juliano falou pra não esquecer?

- Ah, essa é absolutamente imprescindível no teatro! Desejar merda! Muita merda! Mas muita merda mesmo! Pra quem vai estrear! Ou na estreia de uma peça!

- Nossa, Professor! Desejar merda? Que deselegante!

- Relaxa, Karolaine! Desejar merda não é pra ofender nem pra torcer pra dar tudo errado! É o contrário! É pra ter sucesso! Começou no tempo em que as pessoas iam pro teatro de carruagem. Estacionavam seus "veículos" e entravam pra assistir o espetáculo. 

- Os cavalos ficavam ali, sem sair do lugar por um bom tempo e - coisa mais natural do mundo - faziam o número dois ali mesmo, nas proximidades do teatro. Então, quanto mais carruagens, mais cavalos e, quanto mais cavalos, mais merda dos cavalos se acumulava na porta do teatro. Então, quanto mais merda, maior era o sucesso da peça!

- Tá de brincadeira, Professor! O tanto de merda dos cavalos é que era o sinal do tamanho do sucesso da peça?

- Por isso é que se deseja merda pra quem estreia! Então, como vocês vão estrear amanhã, o Juliano e eu desejamos merda, muita merda, mas muita merda mesmo pra todos vocês!

- E a gente, fala o quê?

- Vocês não devem agradecer! Ou ficam em silêncio ou retribuem o desejo! Vocês escolhem...

O Educador tinha certeza do que os adolescentes escolheriam. E não deu outra!

- Merda, Professor! Muita merda! Mas muita merda mesmo! Pro Juliano e pra você!

Terça-feira. Dia das peças.

O Teatro tava disponível o dia todo pros adolescentes. E é lógico que cada segundo era extremamente importante. Passar o dia inteiro ensaiando no palco da apresentação é fundamental! Faz toda a diferença!

E o esquema já tava todo armado: logo cedo o ônibus do Projeto ia levar todo mundo pro Teatro, o almoço ia rolar por lá mesmo - levado do próprio CRAS Nochete, com aquele carinho e tempero da Zelma, pros meninos não terem problema de piriri com comida diferente - e, à tarde, foco total nos preparativos pra apresentar as peças à noite.

Só que o Educador acordou bem mal: dor de cabeça, febre, vômito, diarreia, dor muscular, dor no fundo dos olhos...

- Ah, não! Justo hoje! É pra acabar com tudo e mais tudo!

Foi se arrastando pro Projeto pra levar o pessoal de ônibus pro Teatro e, quando chegou lá, não tava mais se aguentando em pé...

- Santinhas e Santinhos! Tô com suspeita de dengue! Vou precisar ir pro hospital, pra tomar um negocinho na veia pra ter gás pra poder passar o dia com vocês!

- Fatal e Perfume vão subir comigo ali pra cabine! Vâmo fazer uma passagem pra eles aprenderem a fazer a iluminação pra vocês fazerem o ensaio completo! 

- Ah, e tem os três sinais!

- Tô lembrando, Professor! Quando a gente veio assistir "Quem escolhe seu futuro?", tocou mesmo uma campainha três vezes antes de começar a peça! Mas não tenho a menor ideia do porquê disso...

- Essa é uma regra que também vem das antigas! Era pra avisar a plateia pra se acomodar e esperar, em silêncio, o início do espetáculo.

- E, pra variar, tudo girava em torno do rei, quando ele resolvia ir ao teatro: o primeiro sinal era dado quando a carruagem do rei era avistada; o segundo, quando o rei entrava no recinto; o terceiro, quando o rei autorizava o início da peça.

- Hoje as indicações dos sinais são outras: o primeiro toque é pro público entrar no teatro; o segundo, é pra que todos ocupem seus lugares; o terceiro é pra avisar que o espetáculo vai começar. E logo depois, já se abrem as cortinas...

- Esse ritual foi criado pelo dramaturgo, ator e diretor francês Jean-Baptiste Poquelin, o Molière, que dava três batidas no chão com um pedaço de madeira, em sequência, pra acalmar o pessoal e sinalizar o início da peça. Por isso, os sinais ficaram conhecidos como "as pancadas de Molière".

- E significam muito mais do que simples toques de campainha: servem como preparação, coordenação e respeito pela plateia e pela arte; refletem a disciplina, fundamental pro bom andamento do espetáculo; alertam os atores e a equipe técnica de que cenário, som e iluminação devem estar OK; e, acima de tudo, simbolizam a passagem da vida real pra magia do teatro, servem pra fazer a gente ir se desligando do mundo concreto e mergulhando na fantasia da história que vai ser contada...

- Caramba, Professor! Top da galáxia essa ideia aí, mano! Sabendo disso tudo aí, vou dar um off em tudo que tá lá fora e entrar ligadaço na fita que a gente vai desenrolar, tá ligado?

- É isso, Tá Ligado! Captou a essência! Tá pronto pra atuar! Vocês todos tão prontos! É só deixar rolar...

- Tô indo ali pro hospital! 

O bom é que o hospital ficava só a dois quarteirões da Prefeitura! O Educador acabou voltando lá mais duas vezes pra tomar aquele negocinho na veia pra não capotar de vez...

E à noite, na hora das apresentações, já tava bem melhor! Conseguiu fazer a iluminação de boa!

Os adolescentes mandaram bala! Fizeram dois espetáculos de responsa! Aplaudidos de pé! Salva de palmas estendida, inclusive: ovacionados por mais de três minutos, contados no relógio pelo Educador! 

Três minutos de êxtase, três minutos de contemplação: rostos iluminados, olhos brilhando, sorrisos largos. Tavam encantados com o que fizeram, com o que sentiram, com o que viveram! Tavam no puro creme da felicidade!

- Deu merda, hein Professor! Deu muita merda! Mas deu muita merda mesmo!

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