Morde a maçã!
Sexta-feira não tinha trabalho com as crianças e adolescentes no Projeto. Era dia de planejamento das atividades da semana seguinte, visita às famílias e às escolas.
A integração Projeto-Família-Escola era o diferencial do Criança Cidadã! Trabalho monstro, mas dava resultado na mesma proporção...
E ainda tinha gente que falava, no puro creme da ironia, que queria ser Educador Social!
- Pra vocês o fim de semana começa sempre mais cedo!
- Que moleza, hein? Vocês não fazem porcaria nenhuma na sexta-feira!
- É um absurdo! Deviam trabalhar com a meninada a semana inteira! Onde já se viu? Não atender na sexta-feira!
- Ah, pra Educador toda sexta é feriado!
Bora reconhecer que pra alguns era mesmo! E o pior que o perdido não era só na sexta, não! Tinha Educador que não trabalhava absolutamente nada era a semana inteira! Só todo dia!
E batendo no peito ainda por cima, pagando de sócio-proprietário da razão, de conhecedor e detentor da verdade absoluta, com tudo e mais tudo que é motivo pra não fazer nada mesmo. Vai vendo os argumentos incontestáveis.
- Ah, pra que se matar com tema transversal, objetivo, conteúdo, metodologia, avaliação?
- Ah, pra que queimar fosfato pra bolar coisa diferente pra não repetir no Projeto o ambiente escolar?
- Pra que isso tudo? O que é que vai mudar na vida dessas crianças?
- Eles não tão nem aí pra nada! Não tem interesse em nada! Ainda mais os adolescentes...
- Eles é que querem ficar sem fazer nada no Projeto!
- Ficar sem fazer nada, não! Os meninos querem bola e as meninas querem rádio!
Então partiu pro esquema: de segunda a quinta, bola pros meninos, rádio pras meninas; ponto facultativo decretado por conta própria toda sexta e já era...
- Trouxa é quem acha que vai impactar a vida desse povo fazendo alguma coisa fora da caixinha! Ainda mais com os adolescentes...
O Educador era o tal do trouxa aí!
Que "se matava" com tema transversal, objetivo, conteúdo, metodologia, avaliação;
Que "queimava fosfato" pra bolar coisa diferente pra não repetir no Projeto o ambiente escolar;
E, que depois da atividade temática planejada, aplicada, desenvolvida, finalizada e avaliada pelos meninos e pelas meninas - sim, eles davam nota pro trabalho do dia, pro Educador e pra eles mesmos, só todo dia! - ainda partia pro campinho de terra, em pleno sol de "Prudentexas" às três da tarde, pro sagrado vôlei de areia no Espaço Próprio...
- Hoje é dia de jogar no time da gente, Professor!
- Opa, bora lá!
E o Educador gostava! Demais...
Devia ser por isso que praticamente toda sexta tocava o telefone da sala da Lupécia, a Assistente Social do Projeto.
Quem era?
Silvana, a Coordenadora Pedagógica!
- Oi, tem mais uma maçã sem raio-x pra você!
Ah, a maçã sem raio-x era estratégia do Educador pra convencer os adolescentes a embarcarem nas viagens dele e nas da Silvana também.
Toda vez que um deles inventava moda de fazer coisa fora da curva, apelar pra resenha da maçã era o recurso pra tentar pesar na mente da molecada, quebrar as resistências e fazer eles abraçarem a ideia...
- É o seguinte, pessoal: como é que a gente sabe se uma maçã tá bichada? Fazendo raio-x, ultrassom, ressonância, tomografia?
- Claro que não, né Professor! Pirou? Tem que morder a maçã, tá ligado?
- É isso aí, Tá Ligado! Não tem outro jeito! E como é que vocês vão saber se vai dar bom o que a gente vai fazer hoje no Projeto?
- Só fazendo, Professor!
- Então bora morder a maçã!
E a maçã da vez era um tremendo de um desafio!
- Acabei de receber um "convite irrecusável" da Secretaria de Cultura e Turismo! Pra Mostra de Teatro Estudantil Timochenco Wehbi! Pensei na sua turma...
- Opa, que maneiro! Que iniciativa bacana! Levar o pessoal pro teatro! Acho que vai ser a primeira vez pra quase todos eles! Qual é a peça que a gente vai ver? Quando vai ser?
- Calma, muita calma nessa hora! Ou eu não expliquei bem ou você não entendeu direito: o convite da Cultura não é pra levar os adolescentes pro teatro pra assistir uma peça!
- Ah, não? Então explica direito pra eu poder entender bem...
- Então vâmo lá! Pra não deixar nenhuma dúvida: o convite da Cultura é pra levar os adolescentes pra encenar uma peça no teatro! Uma, não! Duas, né? Uma pela turma da manhã e outra pela turma da tarde!
- Fala sério, Silvana! Encenar? Cê tá me dizendo que os nossos adolescentes vão fazer teatro? Olha só o que eu tô te falando: provavelmente nenhum deles nunca pisou num teatro! Nenhum deles nunca assistiu um espetáculo!
- Mas não é isso que é o mais legal nessa história? Será que existe algum registro de alguém que pisou num teatro pela primeira vez já no palco, atuando? Seus meninos vão ser os primeiros! Não é o máximo? Cê vai topar, que eu sei...
- Opa, parou! Parou tudo, Silvana! Vâmo devagar com essa empolgação, aí! Quando vai ser essa Mostra? E as peças? O que é que eles vão encenar? E os roteiros? E os textos? Quem vai dirigir? Quem vai ensinar esses meninos a fazer teatro?
- Calma, paz no coração! Vai ser em maio! A gente tem sessenta dias! A Secretaria de Cultura já contratou um ator/diretor pra coordenar o trabalho: ele vai duas vezes por semana aí no Nochete pra fazer tudo o que é preciso pra montar as peças!
- Sessenta dias, Silvana? Duas vezes por semana, Silvana? É o puro creme do desespero! É muito pouco tempo! Pra começar do zero! Pensa só o que vai ser se der ruim: uma experiência extraordinária pode acabar numa frustração descomunal! Não da pra arriscar! Não vou expor os adolescentes ao fracasso desse jeito! Pra abraçarem uma vergonha, assim, na faixa? Nem pensar, minha amiga! Desculpa aí, Silvana! Mas não vai rolar, não!
- Uma experiência extraordinária, meu querido! Você mesmo que falou! Tá aí em você! Bem viva, por sinal! Nem tem como negar! Você sabe muito bem como essa experiência é extraordinária! Não vai dar pro seu pessoal a chance que você mesmo teve de viver tudo isso? Vai ser uma experiência extraordinária pra eles! E pra você também...
- Caramba, Silvana! Aí cê já tá forçando, né? Tá quebrando minhas pernas, pô!
É que a Silvana sabia o tanto que o Educador gostava de teatro. Sempre conversaram muito sobre cultura e, num desses papos, o Educador contou que já tinha vivido uma experiência extraordinária com o teatro: com doze anos, em plena sexta série, fez o Pedrinho, em A Bruxinha que era boa, clássico de Maria Clara Machado...
- Rapaz, é a sua história com o teatro! E tá acontecendo de novo! O mesmo roteiro, tintim por tintim, reparou?
- Pior que é mesmo, Silvana! Foi em 87! Naquele ano teve uma greve dos professores que durou mais de sessenta dias! Foi a maior de todas! A gente passava a manhã inteira jogando futebol de botão na casa da minha vó e a tarde inteira jogando bola no campinho da linha do trem! Pensa numa vida boa! Zero obrigação...
- Mas, quando acabou a greve, começou a famigerada reposição das aulas! Aí, pra poder cumprir todos os dias letivos, criaram várias atividades extra-classe e as professoras do Bosque inventaram de montar uma peça de teatro...
- Eu não quis participar de jeito nenhum! Era extremamente tímido! Muito, mas muito fechado mesmo! Suava horrores quando tinha que apresentar trabalho em grupo! Passei uma vergonha enorme numa dessas: minha função era só a de mostrar um cartaz no final, porque todo mundo sabia que eu passava mal só de pensar em falar em público; então fiquei encostado na lousa, no puro creme da angústia, enquanto cada um fazia sua fala; quando chegou a hora de abrir a cartolina, dei um passo à frente e a sala inteira caiu na zoeira: atrás de mim, na lousa, aquela "pizza de suor" arrebentou com a aula! E comigo...
- No dia seguinte a Dona Sílvia, a Professora de Português, bateu palma lá em casa. Foi me chamar pra entrar na peça: falou que eu tinha potencial, me desafiou a enfrentar a minha timidez, me encorajou a quebrar o casco e sair pro mundo, me deu a oportunidade de morder uma maçã...
- Começou do zero, né? Sabia alguma coisa de teatro?
- Nunca tinha pisado num teatro na minha vida, Silvana!
- Tô te falando! Tá acontecendo tudo de novo! Igualzinho...
- Pois é! Bem parecido mesmo! A gente começou totalmente cru! Mas começamos e fomos em frente: leitura e mais leitura da peça, ensaio e mais ensaio, estudo das técnicas, postura, expressão, gestual, voz, posicionamento, marcação, ocupação do palco, interação com a plateia, leitura e mais leitura da peça, ensaio e mais ensaio...
- E quanto tempo vocês tiveram pra deixar a peça pronta?
- Sessenta dias, Silvana! A gente fez tudo em sessenta dias, Silvana!
- Ah, agora sou eu quem fala, meu amigo: é o puro creme do flash back!
- Coisa mandada, né? Foram sessenta dias mesmo! E chegou o grande dia! E foi com categoria: no Teatro Municipal Procópio Ferreira! Fizemos três sessões: manhã, tarde e noite! Pra crianças de duas outras escolas da cidade e, é claro, pro pessoal da nossa escola!
- E não é por nada, não! A gente fez foi um baita de um sucesso! Tanto que a Secretaria da Cultura convidou a gente pra continuar encenando, uma vez por semana, até o fim do ano, pra todas as escolas da cidade!
- Verdade? Essa parte você ainda não tinha me contado!
- É, o Grupo de Teatro do Bosque ficou famoso na cidade inteira! A gente chamava as crianças pra subirem no palco pra trocar ideia com a gente no final das peças! Elas pediam pra gente dar autógrafo nos cadernos! Foi realmente foi uma experiência extraordinária!
- No ano seguinte quem bateu palma lá em casa foi um representante do Grupo de Teatro da Secretaria de Cultura. Foi me chamar pra entrar no elenco! Disse que eu tinha potencial, que tinha muito pra aprender também, que a gente podia fazer uns ensaios sem compromisso e tals...
- E aí? Você foi? Virou ator?
- Fui não! Virei não! Infelizmente não mordi a maçã! Mas não foi porque eu não quis, não! Meu pai e minha mãe que não deixaram! Vetaram com força! Barraram com tudo e mais tudo!
- Sério? Por quê?
- Ah, Silvana! Década de oitenta! Cidade do interior! Esse negócio de ser artista desencaminhava a pessoa pra vida louca!
- Nossa! Que coisa! Então, né? E agora, depois de tudo isso, um certo Educador Social fica aí, todo cheio de mi-mi-mi, com medinho dos adolescentes da turma dele passarem vexame, pondo o pé na possibilidade deles viverem uma experiência extraordinária...
- Aff, Silvana! Precisa pegar pesado desse jeito? Cê me aperta sem me abraçar, né? Vâmo fazer o seguinte: segunda-feira apresento a proposta pra eles!
- E já tô até vendo o que vai rolar:
- Fazer teatro, Professor? Pirou? Ninguém aqui nunca pisou num teatro e você vem com essa parada de encenar uma peça?
- Não vai ter jeito não, meu amigo! Vai ter que recorrer à maçã sem raio-x de novo!
- Acho que vai ser preciso incorporar o próprio Procópio Ferreira pra fazer o pessoal topar essa mordida...
CONTINUA SEMANA QUE VEM...
Vamos aguardar o próximo capítulo ou final. 👏👏👏
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