É tipo assim: a Vó Déta é mó recalque, tá ligado?

 

- Castela só, Professor! Olha quem tá chegando no Projeto de mãozinha dada, no maior dos love e tals...

- Ana Laís e Wescley! Que casal mais fofo! Já tava mais que na hora, né?

- Pois é, né Professor! Se naquele dia que a gente trocou ideia você tivesse me falado que já fazia uma cara que a Ana era a fim de mim, eu não ia vacilar tanto pra chegar nela, tá ligado?

- Naquele dia que a gente trocou ideia eu te falei que ela gostava de você, Wescley!

- Mas não me contou que um dia antes já tinha trocado ideia com ela também, né Professor?

- E depois que trocou ideia com o Tá Ligado, também não falou nada comigo, né Professor? É, tipo assim, deixou solto pra ver no que ia dar, né?

- Foi bem isso mesmo, meus queridos! Vâmo dizer que minha função nessa história foi só ouvir e dar uns toques pra vocês sacarem que tavam apaixonados. Aí a bola ficou com vocês! 

- E ainda ficâmo mais umas data tretando todo dia, até que...

- Até que enfim, né? Ainda bem que deu bom, porque já não tava mais aguentando os pegas diários de vocês dois!

- Firmeza, Professor! Pode ficar tranquilo que daqui pra frente vai ser tudo na paz, tá ligado? E os pega tão sendo bem diferente...

- Melhor pegar leve nesses pega aí, vocês dois! Começo de namoro, tão se conhecendo melhor, vâmo pianinho! Nunca da bom queimar a largada em fase de test drive!

- Pode deixar, Professor! Fica sossegado que aqui é suave! É no respeito! A mina é que manda, tá ligado?

- Falando nisso, Professor! A gente pode, tipo assim, namorar no Projeto?

- Boa pergunta, Ana Laís! Vâmo ter que bater um papo com a Lupécia, já que vocês tão sendo os pioneiros de formação de casal aqui no nosso Núcleo. Mas não vejo nada que impeça, não! Podem ficar juntos, sentar juntos no refeitório, fazer as atividades juntos em sala, no Espaço Próprio também...

 

- Equilíbrio, meus queridos! Equilíbrio é tudo! Moderação e bom senso! Quando a gente tá namorando, é natural querer ficar sempre perto de quem a gente gosta, mas também é necessário um tempo pra si mesmo, pra família, pros amigos, pra escola! E aí a calibragem disso tudo é com vocês!

- Então, no popular: a gente pode namorar no Projeto, mas sem mela-mela!

- Não só aqui no Projeto, mas no geral mesmo! Em qualquer tipo de relacionamento social - namoro, casamento, trabalho, escola - tudo o que a gente faz tem que ter tempo e lugar adequado! 

- Mas já que vocês tão preocupados com o que pode e o que não pode aqui, então vâmo balizar: lembrem-se sempre de que a gente tem duas salas de Fase I, são crianças de sete a onze, que tem vocês, os adolescentes, como referência! 

- Eita, Professor! Nunca tinha registrado essa fita de ser exemplo pros menor, tá ligado?

- Ah, é só começar a olhar com mais atenção e você vai perceber com muita facilidade como eles repetem o que vocês fazem e falam! Eles vão se moldando com base no padrão de comportamento de vocês! Afinal, vocês já tão na Fase II e os pequenos querem demais ser iguaizinhos a vocês quando chegarem aqui! Por isso é preciso bastante cuidado pra não vacilar nas atitudes, porque vocês tão sendo filmados o tempo inteiro aqui, copiaram?

- Já é, Professor! Já peguei qual é! Tudo isso é só pra pesar na mente da gente pra não ficar se beijando nem se esfregando na frente da molecada, tá ligado?

- É, tipo assim, vai que maluquinho chega em casa contando que viu a gente nos amasso aqui no Projeto...

- Também por isso, Ana Laís! O que a gente faz na frente dos outros pega demais, mas não pode esquecer que o que a gente faz quando ninguém tá vendo tem a mesma importância! Ou até maior...

- Aí, vai vendo, Ana Laís! Que Professor ligeiro nas ideia! Agora ele tá mandando a letra pra gente se segurar quando a gente tiver no "só nóis dois", tá ligado?

- Meus queridos, é isso mesmo! E vou aproveitar o papo reto e mandar uma real pra vocês: vocês tão na maior euforia, tá certo! É começo de namoro, é tudo descoberta, muito sentimento novo, tudo que é hormônio fervilhando aí dentro de vocês! Mas bora colocar o pé no chão: é muito, mas muito difícil, mas muito difícil mesmo, é raro, é raríssimo, acontece uma vez a cada quase nunca de alguém encontrar o amor da vida inteira assim de cara, no primeiro match! É muito pouca gente na vida que recebe essa dádiva do destino, esse privilégio tão extraordinário de ser o primeiro e único um do outro pra sempre!

- Vixi, Professor! Tâmo no mó love! Aí vem essa resenha de que é a cara de todo mundo dar ruim na estreia! Desanima a gente, não! 

- Wescley e Ana Laís, é o seguinte: torço imensamente, do fundo do coração, pra que vocês fiquem juntos por toda a eternidade, sejam abençoados, vivam o tão sonhado felizes pra sempre, mas não posso deixar de falar pra vocês da vida como ela é e do amor como ele é pra grande maioria das pessoas! É muita tentativa e erro até achar a tão desejada cara-metade! E olha que tem gente que passa a vida toda na busca e não acha! Mas também não posso cravar que é impossível! Justo eu, né?

- Então, Professor! Quer dizer você é um desses sortudo aí? Ah, não boto uma fé!

- Ah, pode acreditar! Tá aqui bem na frente de vocês um felizardo que tá até hoje vivendo o primeiro e único amor da vida dele...

- Que da hora, mano! Aí, Ana Laís! Bora fechar pra ser assim também, igual o Professor? Cê quer?

- É, tipo assim, bora né? Quero sim!

- E como é que faz, Professor? Desenrola aí pra nós os paranauê de ser feliz pra sempre...

- Putz! Tem receita não, meu querido! Nem fórmula secreta ou milagrosa! Acho que é só amar mesmo...

- E encarar a Vó Déta, né Professor!

- Ai, caramba! É mesmo, Ana Laís! A Dona Destra! Já contou pra ela que você tá namorando o Wescley?

- Não contei e nem vou contar, Professor! A Vó Déta não deixa eu namorar de jeito nenhum! Diz que só vai pensar em aceitar quando eu tiver dezoito anos! E, ainda por cima, só se ela for com a cara do mano! 

- É, tipo assim, a Vó Déta é mó recalque, tá ligado? 

- Então, bem complicado, né? A Dona Destra não é fácil de trato mesmo, não! Na verdade, ela é bem, mas bem inflexível mesmo nas convicções dela! E a gente sabe que as convicções da Dona Destra são bem meio que...

- Do tempo dos dinossauro, né Professor? As ideia da Vó Déta são igual aquelas parada lá daqueles bicho que morreu, mas não derreteu e virou pedra, tá ligado?

- Fósseis, Wescley! São fósseis!

- É isso mesmo que a Vó Déta é, Professor! Tipo assim, um fóssil!

- Eu sei, Ana Laís! Entendo sua angústia, mas, mesmo assim, ainda acho que você deve contar a verdade pra ela...

- Sem chance, Professor! A Vó Déta não vai descansar enquanto não ver o fim do namoro da gente! Vai fazer de tudo e mais tudo pra separar a gente! Vai ser um inferno! Vâmo deixar baixo essa fita aí...

E não contaram nada pra Dona Destra mesmo! Mas alguém contou! E a Dona Destra partiu pra ação! E adivinha só qual foi o primeiro lugar em que ela apareceu pra pedir uma satisfação? Pois é! E foi com tudo e mais tudo pra estraçalhar com o Projeto e com Educador...

- Então é aqui que tão ensinando as crianças a fazerem sem-vergonhice?

- Que é isso, Dona Destra? Aqui a gente...

- Leva os filhos e os netos de gente de bem pro caminho da perdição!

- Dona Destra, pelo amor de Deus! A Ana Laís...

- É uma criança! Uma criança! E você, Professor, botando ideia de fornicação na cabecinha dela! Praticamente jogou minha neta pra cima daquele, daquele menino! Outra criança! E ainda usa o nome de Deus em vão! Que heresia! 

- Dona Destra, ninguém fez nada de errado! Simplesmente aconteceu! Eles se gostam!

- Aconteceu? E você deixou, Professor? Não impediu, não proibiu, não fez nada! Se omitiu, no mínimo, né? Porque eu seu muito bem que você deu foi força pra esse namoro! E muito mais, né? Foi o cupido, Professor! Fez de tudo pra juntar esses dois! Tá feliz, né?

- A senhora tá distorcendo tudo, Dona Destra! Eu só...

- Tá ensinando libertinagem pras crianças!

- Dona Destra! A Ana Laís e o Wescley já tem quinze anos! Eles não são mais...

- Crianças! São crianças, sim! E você e esse Projeto tão manchando a pureza e acabando com a reputação da minha neta! Já tá ficando mal-falada na vila toda...

- Dona Destra, a senhora não tá deixando eu falar! A senhora precisa...

- Fazer uma denúncia! É o que eu vou fazer! Vou na Rádio Mercantil, vou na TV Divisa, vou pra Delegacia, vou mostrar pra cidade inteira o crime que tá sendo cometido contra as crianças todo dia aqui nesse Projeto do Caos! 

- Dona Destra, agora a senhora já tá começando a passar dos limites!

- Limites? Quem é você pra falar de limites, Professor? Que limite você deu pra minha neta aqui nesse inferninho? Pois saiba que aqui a Ana Laís não pisa mais os pés! E também já mudei ela de escola! E esse namoro pervertido tá acabado! Ela não vai ter mais nenhum contato com aquele, aquele...

- É Wescley, Dona Destra! O nome dele é Wescley!

- Aquele pretinho! Isso é o que ele é! Aquele pretinho! Você acha mesmo que eu ia aceitar a Ana Laís com aquele pretinho, Professor? Já imaginou ela casada com ele? E depois, um bando de negrinhos correndo e pulando pela casa igual...

- Diga, Dona Destra! Igual a...

- Igual a um bando de macaco, Professor! Igual a um bando de macaco! E não é isso que eu quero pra minha Ana Laís! Nunca vou aceitar!

- Bom, Dona Destra! Agora quem vai pra Delegacia sou eu! Vou denunciar a senhora por racismo!

- Racismo? Eu não sou racista! De jeito nenhum! Sabe qual é o maior problema desse,  desse moleque, Professor? Não é ser preto! Não, não é ser preto! O maior problema desse moleque é que, além de ser preto, esse moleque é pobre! Que vida que ele vai dar pra minha Ana Laís? Não! Não vou aceitar! De jeito nenhum! E ainda vem dizer que vai me denunciar! Que petulância! Só tâmo nós dois aqui! Quero ver provar o que eu falei! Me denunciar! Você e quem mais, Professor? 

- O Professor e eu, Vó Déta!

Era a Ana Laís! Tava na porta da sala! Chegou a tempo de ouvir o suficiente pra testemunhar...

- O Professor e eu, Dona Destra!

Era o Tá Ligado! Tava junto com a Ana Laís! Chegaram juntos! Vieram juntos, quando a Ana percebeu que a avó tava saindo de casa em direção ao Projeto...

- O Professor e eu, Dona Destra!

Era a Lupécia, a Assistente Social do Projeto! Ouviu os gritos da Dona Destra, veio ver o que tava acontecendo e acompanhou toda a discussão, ali na porta da Sala da Fase II...

E o que é que deu?

Nada!

Em pleno 2010, não deu nada!

A defesa da Dona Destra se baseou na história da vida dela: a filha engravidou aos dezesseis - da Ana Laís - e morreu num acidente de carro, aos dezenove, junto com o parceiro! Ficou responsável pela neta, órfã de pai e mãe aos três anos de idade! Só não queria que a história se repetisse! Não suportaria passar por tamanho sofrimento novamente...

Ah, esses advogados!

A Ana Laís ainda ficou sob a tutela da avó até chegar à maioridade. No dia que fez dezoito, deu linha! Foi morar na casa do Tá Ligado!

E partiram os dois pra luta! Bora ralar pra ganhar a vida! Dois anos depois, alugaram uma edícula! E vieram os pretinhos! 

Sábado passado, cinco da tarde, toca a campainha...

- Ah, não acredito! Wescley e Ana Laís! Nossa! Quanto tempo! Que alegria ver vocês!

- Então, Professor! Também tâmo muito feliz de poder reencontrar você! E já vâmo direto pro que interessa, que foi assim que a gente aprendeu com você: a gente vai casar mês que vem e veio convidar você...

- Nossa! Dá um abraço aqui! É lógico que eu vou...

- Ser nosso padrinho!

- Ah, meus queridos! Só tenho uma coisa pra dizer pra vocês: "É, tipo assim, a maior honra pra mim ser padrinho do casamento de vocês, tá ligado?"