O dono da garagem
Tava ficando quase impossível estacionar no pátio interno do DRS XI - Departamento Regional de Saúde de Presidente Prudente.
E não era só por causa da superlotação! Todo mundo sabe que depois das nove é cento e dez porcento de chance de não encontrar vaga disponível.
E aí começa o trenzinho de carros enfileirados, até nas áreas de passagem. Então fica que só todo mundo acaba obstruindo a saída de todo mundo.
A solução pro engavetamento diário é todo mundo deixar um papelzinho com o número do telefone no painel do carro.
Quem precisa sair lá do fundão acaba tendo que ligar pra uns três ou quatro virem remover suas naves. Alegria mesmo é quando alguém tá em reunião ou precisou sair do prédio...
Mas, seja em três, trinta ou trocentos minutos, todo mundo acaba aparecendo pra liberar o pobre coitado que tava encaixotado.
E depois todo mundo se ajeita de novo, até que alguém chame novamente pra repetir o procedimento.
Mas essa é a pílula diária de felicidade que todo mundo já tá bem acostumado a ter que tomar. E, dependendo do dia, são várias doses desse eficientíssimo relaxante.
O que tava pegando mesmo ultimamente era outro calmante, não menos eficaz: as pombas!
Tomaram conta do espaço todo! Invadiram, ocuparam, fizeram ninho, se reproduziram, se espalharam...
Chegou num ponto que o pessoal não tava mais conseguindo simplesmente entrar com o carro. Elas tomaram posse do estacionamento dum tanto que nem tavam mais voando quando os veículos se aproximavam.
Aí a galera tinha que ficar esperando pela boa vontade das bonitas, que liberavam o caminho dando aqueles passinhos pro lado, em câmera lenta, mais vagarosas que tartaruga com preguiça.
O Ricardo tinha pra ele que aquilo era tudo de propósito. Pomba é um bicho filho da mãe! Elas tramam as "trapaiada".
Ou você acha que aqueles rasantes que elas dão, aparecendo do nada e atravessando na frente do carro da gente, tirando aquelas finas, quase matando a gente de susto, são mera coincidência?
E as cagadas, então? Mesmo quando a gente deixa de estacionar debaixo das árvores, abrindo mão da sombra e coloca o carro pra cozinhar no sol só pra ter certeza de que não vai ser alvo dos bombardeios, elas se juntam - meia-dúzia pelo menos - sentam nos fios da rede de energia e fazem o serviço do mesmo jeito...
Pro Ricardo é tudo competição: são as modalidades das "Olimpombíadas". Tudo valendo medalha! Ouro pra quem chegar a raspar a asa em veículo em movimento sem perder nenhuma pena e pra quem acertar o disparo na mosca, a maçaneta do motorista.
Mas não tem dinastia que dure pra sempre! E a supremacia das pombas no DRS XI acabou quando ele chegou!
Ninguém sabe dizer exatamente quando nem de onde veio. Mas chegou, chegando!
Em pouco, mais muito pouco tempo mesmo, exterminou a infestação. Dizimou a tribo das pombas! Comeu todas, uma por uma!
O gato virou o heroi da repartição!
E começaram as regalias.
Potinho de ração, de água. Teve um certo motorista que acostumou o Corintiano - o primeiro nome que deram pra ele, devido à pelagem alvi-negra - com aguinha misturadinha: abria a torneira e deixava correr a água em temperatura ambiente e despejava junto um pouquinho de água geladinha...
- Ele gosta assim, Ricardo!
- Fala sério, Tico!
Depois o próprio Tico rebatizou o bicho: virou Mortadela!
- Ele adora mortadela, Ricardo! A gente corta os pedacinhos bem pequenininhos e vai dando bem devagarzinho, um por um...
- Pelo amor de Deus, rapaz!
E logo arrumaram uma caixa de papelão pro bichano dormir. Depois apareceu uma casinha, daquelas chiques, forrada com cobertinha, pro rapaz se aquecer nos dias frios.
Se bem que ele preferia mesmo era deitar nos capôs dos carros que acabavam de chegar. Sabe como é, né? Nada se compara a um motor bem quentinho...
Tudo muito bonito, tudo muito lindo, tudo muito maravilhoso! Só que não...
E quem é que consegue unanimidade?
Assim que acabaram as pombas, começaram as reclamações, todas encaminhadas ao Centro de Gerenciamento Administrativo - pra deixar a Elisiane ainda mais feliz do que já é...
- Tem que botar esse gato pra fora do DRS! Ele tá arranhando tudo que é carro!
- Eu é que não vou entrar em vaquinha pra comprar ração pra gato!
- Vocês sabiam que é proibido manter animal de estimação em órgão público? Ainda mais num Departamento Regional de Saúde! Tem que ser exemplo!
- Por que vocês não levam ele pra uma dessas ONGs que cuidam de animais de rua?
- Tem é que denunciar pro Ministério Público! Aí o DRS vai ser obrigado a tomar providência...
- É só enrolar um pouco de chumbinho num pedaço de mortadela e pronto, fim do problema...
Do outro lado, os defensores da causa animal e da permanência do gato.
- Deixa o pobrezinho aí! Não faz mal pra ninguém...
- Ninguém vai colocar o Frajola - terceiro nome - na rua!
- Aqui ele tem teto, alimento, água e carinho!
- Quem vai ter coragem de fazer mal pra esse bichinho? Ele é tão meigo e dócil. Até se joga nos pés da gente pra ganhar um cafuné...
- Se esse gato aparecer morto, vou pra Delegacia fazer o B.O. na mesma hora!
E a polarização se instaurou no Departamento Regional de Saúde. E ficou meio a meio mesmo! Se houvesse votação pra definir se o gato poderia ou não continuar morando na Unidade, o resultado seria apertadíssimo. E da pra arriscar dizer que os derrotados questionariam a lisura e a transparência do processo, com pedido de recontagem e tudo...
Foi aí que o Ricardo sentiu que a coisa tava ficando meio mandada pra ele. Já fazia um tempo que as meninas tavam insistindo pra ter um gatinho.
- A gente nunca teve um!
- Minha amiga tem seis! Eles são muito fofos!
E o Ricardo tava terminando a reforma da casa, com previsão de mudar em, no máximo, dois meses.
Foi só montar a equação: "gato non grato" no DRS + filhas groselhando pra ter gato + casa nova, vida nova =
- Pessoal, é o seguinte: eu vou adotar o gato! Só preciso de um tempinho, até acabar a obra lá em casa. Então, só peço um pouquinho de paciência pra vocês...
Foi o necessário pra estourar uma nova polêmica no Departamento: os "anti-gato" queriam a saída imediata do bicho e todo dia pressionavam o Ricardo pra levar ele logo e os "pró-gato" questionavam a legitimidade do Ricardo pra levar ele pra casa.
- Mas o gato é do DRS!
- Ele tem que ficar aqui! Já tá acostumado com tudo e com todo mundo!
- Quem o Ricardo tá pensando que é pra tirar o gato daqui assim, sem mais nem menos?
E agora o foco do plebiscito já não seria mais deixar ou não deixar o gato ficar, mas permitir ou não permitir que o Ricardo levasse o gato pra casa dele...
E o pior é que a reforma da casa não acabava de jeito nenhum. Tava com um atrasinho básico só de seis meses...
E o gato aprontando uma atrás da outra. E o povo pesando na mente do Ricardo.
Segunda-feira vem o Alison, da Vigilância.
- Ricardo, o gato subiu no telhado!
- Morreu? Mataram ele? Não acredito, não é possível!
- Calma, rapaz! Nem morreu nem mataram! Subiu mesmo no telhado! Se enfiou lá no madeiramento e depois não conseguiu sair. Ficou miando a noite inteira. Tive que subir e tirar ele por cima. O pior é que acabei quebrando duas telhas..
Na semana seguinte, sobe a Marília, Diretora do Centro de Laboratório Regional, do Adolfo Lutz.
- Ricardo, é você que vai adotar o gato preto-e-branco?
- Eu mesmo, Marília!
- Tá esperando o que então, rapaz? Por que não leva logo?
- Tô acabando de reformar minha casa, Marília! Assim que der pra entrar, venho buscar ele!
- Tá faltando muito? Quer um dinheiro emprestado pra terminar a obra?
- Nossa, por que tanta pressa pra ver o gato ir embora?
- Aquele danado entrou na Bromatologia ontem! Fez a maior lambança: comeu as amostras de alimento, quebrou pipeta, arranhou a porta da bancada, mijou na estufa de esterilização e secagem...
- Não acredito, não é possível!
- Você precisa dar um jeito de tirar ele daqui! Senão eu vou ter que tomar as minhas providências. Não dá pra deixar acontecer de novo!
E foram mais três meses do mais puro creme da pilhação pra cima do Ricardo.
Até que chegou o grande dia! Obra terminada, mudança feita, todo mundo ambientado: hora de buscar o Dante - o quarto nome do gato, agora definitivo, escolhido pelas filhas do Ricardo.
Foram no sábado à tarde. Ele veio rápido, pra inspecionar o carro - costume que mantem até hoje.
Se jogou nos pés de todo mundo, fez graça, deitou, rolou...
Mas foi miando dentro do carro, no caminho até a casa do Ricardo. E continuou a sinfonia quando chegou. É que deu logo de cara com o Maike, o mais novo "irmãozinho".
E não achou nada bom ter que passar a conviver com um inimigo histórico canino que, por sua vez, também não curtiu nada ter que passar a dividir seu reino, até então exclusivo, com um inimigo histórico felino.
Mas com o tempo os dois passaram a se respeitar. O processo de aceitação mútua foi até mais tranquilo do que se imaginava. Superou as expectativas.
Hoje ninguém invade os limites do outro (mas de vez em quando o Dante, quando tá deitado em "sua cadeira", bem que dá uns "presta-atenção" no Maike, quando ele passa por baixo).
Sim, o "Nhã-Nhau" - esse é apelido - tem sua própria cadeira, na qual se assenta pomposamente toda manhã pro seu desjejum. Fica esperando a Nenê preparar o café - quando ela atrasa faz questão de ir acordá-la - pra saborear seu presunto - pois é, não aceita mais mortadela - cortado em pedacinhos bem pequenininhos, servidos bem devagarzinho, um por um.
- Ele adora, Ricardo! Depois deita e dorme, ali mesmo, na cadeira...
Sabe do que mais ele gosta?
De ração misturadinha com sachê sabor carne, frango, atum...
Mas o caçador continua "on", mas muito "on": passarinho que vacila não tem segunda chance. O bicho não perde um bote. E já foram pro papo várias rolinhas, pardais e até um bem-te-vi.
Sem contar as lagartixas, grilos, besouros e até libélulas: aparecem decapitados, cortados ao meio, amputados, rasgados.
Adora ficar na janela da frente e na grade da varanda, só observando o movimento nas árvores da rua. Outro dia teve visita ilustre: um tucano, acredita!
Quando viu, o Dante ergueu as orelhas, arregalou os olhos e chegou até a miar. Tava diante do seu maior sonho de consumo. Mas reparando um pouquinho melhor, principalmente no tamanho do bico do pássaro, acabou desistindo da empreitada. Melhor deixar baixo...
Melhor brincar de caçar os pés da Taciana, a filha mais velha do Ricardo - opa, mais velha não: a que nasceu primeiro, senão ela briga.
Toda noite, o Dante fica esperando ela chegar da faculdade, seguindo sempre o mesmo ritual: vai pro portão e monta guarda. Quando ela chega, inicia a cantoria. E que agudo! Mia comprido, chega até a fazer uns "vibrato".
Fica sentado em frente à menina enquanto ela janta, olho no olho, sem desviar, intimando pra obrigação de toda noite antes de dormir: o pega-pega. Acaba que a Taciana vive com os pés furados de dente e riscados por unha de gato.
Esse vínculo com gente realmente surpreendeu todo mundo. Ninguém esperava que um gato de garagem acabasse se apegando tanto às pessoas.
Com a Lara, a filha que nasceu depois, é o tapinha que não doi. Gosta tanto, que chega a pedir mais quando ela bate com as duas mãos nas ancas dele. Faz aquela sinfonia, passa entre as pernas, se joga no chão, rola de um lado pro outro...
Mas a ligação mais impressionante foi com a Nenê, quando ela fez cirurgia. O gato ficou ao lado dela o tempo inteiro, na cama, durante todo o repouso. Só levantava quando ela levantava. O Ricardo até começou a chamar ele de enfermeiro.
É que parecia demais que ele tava ali cuidando dela de verdade. Parecia não, né? Tava mesmo! O bicho tava era sabendo de tudo o que tava acontecendo...
E essa parada de deitar na cama com a mamãe, ter cadeira exclusiva e tals, acabou suscitando uma questão de ordem: as meninas entraram com uma ação no STF - Supremo Tribunal da Família - requerendo a isonomia, em favor do Maike, do direito de dormir no sofá (zero quilômetro, presente da Mari Liz, irmã da Nenê), que lhe fora negado quando da mudança pra casa nova.
Pra surpresa de ninguém, a votação acabou em 3x1 pela concessão da igualdade e o Maike se deu bem - quem diria - devido à chegada do Dante, que não tá nem aí pra paçoca.
Tá curtindo mesmo é correr pela casa, brincando com bolinhas de sacola plástica, enroladas pela Nenê. É cada rolê...
Mas se engana quem pensa que o Miau - o outro apelido - deixou de ser gato raiz. Só porque ganhou nome Nutela, tá comendo presuntinho e dormindo na cama, com cobertinha e tudo, não quer dizer que deixou pra trás as tradições.
Todo dia, quando o Ricardo chega com o carro, desce pra recebê-lo. O Ricardo? Não, o carro! E todo dia deita no capô pra se aquecer com o calorzinho do motor.
Outro dia, alguém esqueceu de subir o vidro da porta do Fusca do Seu Joaquim. Não deu outra: quando viram, o Dante tava dormindo lá dentro, todo pimpão, em cima do tampão traseiro.
Pois é, tem certas coisas que ficam pra sempre! É como se diz: "Você sai da garagem do DRS, mas a garagem do DRS não sai de você..."
Esse gato já deu muito que falar. Mas mereceu o lar que o acolheu. Bem explicado o episódio.
ResponderExcluirÉ meu amigo poeta, você descreveu exatamente seu gato e todos os obstáculos que passou até conseguir chegar a sua casa. Bela narrativa.
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