O Figurinha e a Dona Eliza, com "Z" da zabumba
Terça-feira,
11 de outubro. 18:32. Mensagem de voz. João Filho, da Auditoria.
-
Ricardo, boa noite amigo! Desculpa o horário, mas tivemos imprevistos no
faturamento dos hospitais. Esse mês atrasou, o Hernando falou agora à tarde que
amanhã vai lá no DRS pra rodar os relatórios, pra poder me entregar na quinta.
E aí vou precisar de toda a equipe o dia inteiro pra analisar e deixar OK pra
enviar pra São Paulo na sexta. Então vamos ter que reagendar a capacitação do
SP Sem Papel que você ia fazer na quinta de manhã com o pessoal que veio do
Ambulatório de Saúde Mental.
- Opa,
pelo menos uma notícia boa! Vou ter mais tempo pra preencher a planilha do
diagnóstico situacional da unidade pra mandar pra Coordenadoria até meio-dia.
Ainda bem que amanhã é feriado. Ou não...
Descansar
pensando no que já tá acumulado pra fazer, com um dia a menos na semana: o
cidadão já sente a acidez no estômago aumentando. Na verdade, transbordando. O
nível já tinha ultrapassado fácil o limite nos últimos dois dias.
Logo
cedo na segunda chegou só um caminhão pra entregar mais de trezentos itens de
mobiliário. Tem que ser ninja no Tetris pra dar conta de fazer caber tudo no
Suprimento, que já tava com mais de vinte aparelhos de ar condicionado
novinhos, na caixa, só esperando o processo de licitação pra contratar o
serviço de instalação.
-
Putz, justo hoje! O último dia do prazo pra fechar o mês no sistema de
patrimônio e evitar de perder a integração com o sistema contábil. Se a
Eliziane não tivesse descido pra assumir a conferência dos móveis, a noite teria sido uma criança.
Na
terça teve reunião com a diretoria do Grupo de Gerenciamento Administrativo. On
line. Com as outras dezesseis regiões de saúde do Estado. Daquelas. Cabulosa.
Necessidade de apuração preliminar pra autorizar convalidação de pagamento
indenizatório por serviços prestados sem cobertura contratual.
Não
suficiente, aparecem os agentes da recém-criada Controladoria Geral do Estado
pra uma visitinha surpresa: fiscalização ordenada na Unidade Dispensadora de
Medicamentos e Outros Insumos. Aí foi a tarde toda com o Well, do Núcleo de
Finanças, pra redigir as justificativas pros apontamentos das irregularidades
encontradas.
E
ainda tem que engolir que servidor público é tudo vagabundo! "Just walk a
mile in my shoes, Mr. Guedes!"
Mas
felizmente o sol já tava se pondo.
- No
caminho respondo pro João que até deu bom precisar adiar o tutorial.
Oito
quilômetros diários obrigatórios. Pra ficar vivo. Num combo com rosuvastatina e
alimentação adequada (utopia, reconheçamos). Mas tem que ter disciplina. É que se vacilar em qualquer um dos três - físico, remédio e comida - o colesterol entope todo o encanamento.
Mas
o Ricardo gosta da caminhada. É aquela hora e meia pra espairecer. Ver as variações de amarelo, laranja, vermelho e roxo no céu, admirar os patos voando
em cunha, revezando as posições na formação, aproveitar o restinho de sol e
sentir a brisa do começo da noite no rosto, cumprimentar os cachorros, descarregar
as vibes negativas.
Saiu já digitando no celular.
- Ráááááááááááá!
- Caramba, o
Capitão América!
Kayke, o
netinho do vizinho da frente. Três aninhos. Sociabilíssimo. Conversa que é uma
beleza. E tem aquela carinha de quem faz traquinagem só o tempo todo. E gosta
muito do que faz. E vai se especializando mais e mais. É o puro creme da
peraltice.
Passa o dia na
casa dos avós. De manhã, apronta tudo o que pode. Depois do almoço, dorme na
rede, com o avô garantindo aquele balanço gostoso. De tardezinha, os pais
passam pra levar ele pra casa.
Tá quase sempre
ali na garagem quando o Ricardo chega do trabalho. Chama o Ricardo de
tio. E ai se o tio não parar pra trocar uma ideia com ele. Pensa numa amizade
que deu liga...
- Ô tio, você
tava mexendo no celular. Não ia nem me ver, né? Tava brincando de qual joguinho?
- Ah, então foi
por isso que você me deu esse sustão?
- Foi pra você
me ver de Capitão América! Olha aqui, ó: meu escudo e minha máscara!
- Que da hora!
Tá muito top!
- Ganhei de Dia
da Criança! Antecipado!
É isso mesmo,
meus queridos: três anos e soltando um "antecipado", assim, bem
natural, consciente do tá falando. Normal pra quem pronuncia perfeitamente os nomes dos
desenhos e personagens favoritos em inglês.
- Rapaz, que chip
é esse que veio instalado em você? Você é uma figura, sabia?
- Eu sou uma
figurinha que não tem igual! Minha mãe que fala isso pra mim...
Aí ninguém se
aguenta. É gargalhada daquelas de chorar e perder o fôlego.
- É, tio! Mas
tem algumas palavrinhas que ele ainda teima em falar errado. Conta pro tio o
que você queria ganhar muito de presente.
- Eu queria uma
"mánica"!
- Ah, uma
máquina! Mas que máquina?
- Uma "mánica"
de por moeda pra pegar aqueles bichinhos!
- De pelúcia!
- Sim, tem lá
no "sópim". Mas ninguém me deu. Nem meu pai, nem você, né vô?
- Mas já te
expliquei que essas máquinas não são de comprar e levar pra casa. São muito
caras. É pra brincar só lá no shopping.
- É, o meu pai
falou que vai me levar no “sópim” de novo pra pegar bichinhos na “mánica”.
E eu falei pra ele levar um monte de moeda!
- Cara, aposto
que se bobearem na vigilância só por dois minutos, vão acabar tendo que pescar
é você de lá de dentro da “mánica”!
- Pelo amor de Deus, tio! Num dá ideia! Conta pro tio por que você ganhou o presente do Capitão América antecipado.
- Porque eu não
tô mais usando fralda!
- Na real?
- Sim, quer
ver? Ó...
E pagou um nude
ali mesmo na calçada pra comprovar. Bem na hora que o pai e a mãe tavam
chegando. Show pra plateia completa. Coisa mandada mesmo. Nada mais lógico, ué!
O moleque foi tão cobrado, todo mundo pegando tanto no pé: quando cumpriu a
missão, tinha mesmo é que ostentar a conquista!
- Ah, que
menino maluquinho! Dá aqui um abração no tio, então!
- Bora pro rolê que já tá ficando tarde!
Andou dois
quarteirões, virou à direita, começou a descer a rua.
- Já tava
esquecendo do João!
Puxou o celular
do bolso, recomeçou a digitar.
- Ráááááááááááá!
- Mas o quê? O
que é isso, meu Deus?
- Sou eu!
E detrás do
coqueiro, encostado na grade da casa, me aparece uma senhora de roupão.
- Te assustei,
né? Desculpa, moço, mas não aguentei. Você tava tão absorto aí nesse celular
que nem percebeu a caçamba bem na sua frente. Aí tive que gritar pra evitar o
acidente!
- Nossa, não
tinha visto mesmo! Ia acabar caindo pra dentro dela. E pior que minhas
experiências com caçamba não são lá das melhores...
- Não entendi!
- Ah, é uma
história comprida, Dona...
- Eliza, com “Z”
da zabumba! Muito prazer! E você é o...
- Ricardo.
- Ricardo do
quê, meu filho?
- Sestim, Dona
Eliza, com “Z” da zabumba. Ricardo Sestim. O prazer é todo meu. E a gratidão
também, por ter sido salvo pela senhora de ter me estrumbicado todo na caçamba.
- Ai, te peço
desculpa novamente, mas não teve outro jeito. Você assustou mesmo, né?
- Imagina, já é
o segundo do dia. Tô até acostumando...
- Então,
Ricardo! Você mora aqui no bairro?
- Na rua de
cima, Dona Eliza. Quase na frente do mercado.
- Mas mudou faz
pouco tempo, né? Nunca vi você por aqui...
- Mudamos em
dezembro. Mas morei aqui desde que nasci. Saí quando casei, em 2001.
- Ah, que
ótimo! Voltando pra casa, literalmente. Veio pra ficar com os pais? Ah, queria
tanto que minhas filhas viessem ficar comigo. Tenho três, mas passo a maior
parte do tempo aqui sozinha. Sou viúva, sabe? Mas que bom que hoje consegui
alguém pra conversar...
- Quem dera poder voltar a morar com meus pais, Dona Eliza! Infelizmente já partiram...
- Nossa, mas
então foram cedo, né?
- Ele, com 63.
Ela, com 64. Os dois de morte súbita, com dois anos de intervalo. Deixaram de
herança a casa e um hipercolesterol genético. Então preciso fazer exercício
todo santo dia...
- Já eu estou
supimpa! Tenho 83 e meus exames são perfeitos. Nenhuma alteração, acredita? Só tenho
uma coisinha: “veiera”!
- Puxa vida,
meus parabéns, Dona Eliza! Com essa lucidez e esse bom humor, a senhora vai
bater os cem molezinha!
- Ah, aí é só
Deus que sabe, né filho! Mas enquanto Ele for permitindo, a gente vai ficando.
Agora você tem que se cuidar mesmo pra chegar até aqui, viu? Você trabalha em
quê? Passa muito estresse?
- Então, Dona
Eliza! Trabalho na Secretaria de Estado da Saúde e...
- Vixi, saúde?
Então passa nervoso sim! Eu trabalhei a vida inteira na educação. Me aposentei
com trinta anos de serviço. Dei aula em escola na zona rural e tudo. Fazia com
paixão. Gostava mesmo. E ainda assim dava umas estouradas! Imagina na saúde,
então!
- Pois é, Dona
Eliza! É pauleira mesmo! Pressão só o tempo todo, mas devo confessar pra
senhora que até gosto...
- Isso é
essencial, sabe? Eu me realizava lecionando no sítio. Era daquelas que
priorizava a caligrafia. Pegava na mão dos alunos pra ensinar a "desenhar" as
palavras.
- Que
coincidência! Minha mãe também era professora e também deu aula em escolinha rural.
E também sempre falava que tinha sido o melhor lugar em que tinha trabalhado.
- Ah, eram
outros tempos! Professor era valorizadíssimo. As pessoas tinham o maior
respeito e a maior admiração pelos mestres. E os presentes que a gente ganhava,
então...
- Minha mãe
contava que ganhava frango, fruta e hortaliça de tudo o que é tipo, pão
caseiro, doce de compota, toucinho de porco. O pessoal do Caiabu adorava ela...
- Do Caiabu?
Sua mãe deu aula no Caiabu?
- Deu sim.
Atravessava o Mandaguari de Fusca. E me levava junto. Eu tinha dois anos. E levava
até a cachorra também. Não tinha com quem deixar a gente...
- Mas foi lá
que eu trabalhei até o fim de 76, quando fui transferida aqui pra Prudente. É
verdade mesmo: quando chovia forte, não dava pra passar pelo rio.
- Não é possível! Então minha mãe entrou no lugar da senhora, em 77!
- Imagina! Vou
contar que tava conversando com a Dona Eliza, com “Z” da zabumba!
- Então vá! Foi
um prazer inenarrável conhecer você, viu? Olha, que Deus, Jesus, não sei se
você é cristão, católico...
- Sou sim, Dona
Eliza! Os dois!
- Ah, que bom!
Então: que Deus, Jesus e Nossa Senhora Aparecida - amanhã é o dia dela, né?
- te abençoem, te iluminem, te orientem
e te protejam!
- Ô, Dona Eliza! Desse jeito a senhora me quebra: me abençoou igualzinho minha mãe fazia!
- Tá chorando,
filho? Mas eu sou uma velha bem levada da breca mesmo! Te dei um susto e agora
te fiz chorar. Vem cá que te dou um abraço!
O Ricardo
acabou dando um perdido na caminhada. Voltou dali mesmo. A essa altura, a
cerveja já tava empedrando no congelador.
Finalmente
conseguiu mandar a mensagem pro João. Sentou pra tomar uma, na paz. Impossível
não refletir. Ao fim de dois dias tão conturbados, uma baita compensação:
dois papos leves, engraçados e emocionantes.
Não teve balancete contábil, relatório de macro-função de unidade gestora, inventário físico-financeiro, síntese do apurado em processo de verificação de conformidade e gestão.
Não teve eleição com polarização, guerra na Ucrânia, preço da gasolina, chuva de picanha, vacina que transforma gente em jacaré, nem pai do Pix, nem pai dos pobres.
Na semana em que
são comemorados o Dia da Criança e o Dia do Professor, num fim de tarde, foi o Ricardo que acabou contemplado com verdadeiras dádivas: levou dois sustos,
ganhou dois abraços e aprendeu um pouco sobre a vida com uma criança de três
anos e com uma professora de oitenta e três. E vice-versa.
E tudo com a
benção da Mãe Aparecida!
Verdade. A vida é vivendo e aprendendo a jogar. Gostei.
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