O carrossel da quebrada


 

- Ô Professor! Não tô aguentando mais de vontade de ir no banheiro, mano!
- Ué, Lasanha! Vai lá! É ali trás...
- Sabe qual é, Professor? Na real, nunca viajei de busão, nem sei como faz essas parada, não!
- Mas rapaz, tem segredo não! Só ir lá e fazer...
- Ah, é embaçado! E se eu ficar preso lá dentro? Vâmo lá comigo? O senhor fica na porta, se der ruim o senhor abre pra mim...
- Fala sério, Lasanha!
E lá foi o Educador montar guarda na porta do banheiro do ônibus pro Lasanha poder estrear...
Competição em São Caetano do Sul. Olimpíada do Programa Atleta do Futuro. Quatro mil adolescentes, de todas as regiões do Estado, disputando tudo que é modalidade. 
O terceiro maior evento esportivo da América Latina, só ficando atrás dos Jogos Panamericanos e dos Jogos Abertos do Interior.
A Prefeitura de Presidente Prudente e o SESI já eram conveniados há alguns anos. Vários Núcleos de Ação Comunitária, depois transformados em CRAS - Centros de Referência da Assistência Social, nos quais era desenvolvido o Projeto Criança Cidadã, levavam crianças e adolescentes à Unidade do Parque Furquim para a prática de atividades esportivas, com planejamento, orientação e supervisão de professores de educação física e dos educadores sociais, uma ou duas vezes na semana.
Pra galera era tudo de bom. Tinham uma baita estrutura pra aproveitar: ginásio poliesportivo, campo de futebol de grama sintética, piscina. Jogavam futebol, vôlei, basquete, tênis de mesa, também tinham oportunidade de experimentar natação, judô, atletismo, badminton e até futebol americano, além de oficinas de arte e atividades recreativas e lúdicas.
Treinamento oficial, pra valer mesmo, era futsal. O pessoal jogava! Dois times masculinos e dois femininos de responsa. Tinha, sim, alguns meninos e meninas acima da média, mas a filosofia era de jogo solidário, mas ofensivo e bonito.
Toque de bola, sem posição fixa, envolvendo o adversário, projeção no ponto futuro, vertical, pra fazer gol. Os resultados positivos começaram a aparecer. Medalhas em todos os torneios internos. Acabou batizado como o Carrossel da Quebrada!
E, pela primeira vez, equipes formadas exclusivamente por adolescentes que participavam de um projeto socioeducativo tavam atravessando o Estado pra representar o Município e a Unidade do SESI local em jogos dessa dimensão. Cinco dias de pura magia, de abóbora virando carruagem...
O que pega é que aqui é Brasil e o filme nunca é da Disney. O ônibus disponibilizado pra viagem passava dos trinta com certeza. Dos trinta anos de uso. Tava a serviço do Parque Ecológico Cidade da Criança. 
Pra dar uma mascarada na idade, foi pintado com as figuras dos animais do zoológico: arara, camelo, hipopótamo, pavão e, o mais famoso, o bendito macaco sorridente, em primeiro plano, com o dedo indicador em riste, fazendo o número um.
Mas, pra quem tava saindo da cidade pela primeira vez na vida, com destino ao paraíso, o negócio era curtir o passeio. Oportunidade de aprender vivendo, ver in loco aquilo que só se conhecia por imagens e pela imaginação, é outro nível, né?
De ações simples, como usar o banheiro do ônibus, a questões das mais complexas, como presenciar um tapete formado por garrafas pet, embalagens de plástico de todas as formas e tamanhos, pneus e madeira navegando no Tietê, empurrado pelos fluxos das ligações clandestinas de esgoto lançado no rio. 
Chegamos. Com certeza, com a mão do Senhor dando uns tapinhas na traseira do tronco-móvel. Só doze horas de odisseia. Várias paradas por panes elétricas, hidráulicas, problema na bomba de combustível, mangueiras ressecadas estourando, pneu murcho, vazamento de óleo de freio. Tudo arrumado na base da gambiarra. Na versão oficial para a reunião de pais: soluções técnicas alternativas.
Foi estacionar e o busão arriou de vez. E não mais se moveu pelas próprias rodas. Acabou guinchado pra oficina. O problema é que os jogos seriam disputados em São Caetano, mas ficamos alojados no SESI de Santo André.
- Rapaz, como é que vâmo pra competição?
- Esperar sair a tabela pra ver quem daqui vai jogar no mesmo lugar que a gente amanhã. E aí, pedir carona. E olhe lá, que se for jogar contra a gente, periga dizer que não pode, porque não tem lugar suficiente no ônibus, que ninguém pode viajar em pé por questão de segurança...
- É nada! Não boto fé que os caras são capazes de...
- Amigão, isso aqui é competição! Acha mesmo que vão arriscar carregar a gente pra ganhar deles? Faz o teste. Se a gente tiver que enfrentar um dos que tão alojados aqui em Santo André, experimenta pedir pra ir junto.
E o Educador ficou passado.
- Como é que pode? E o Barão de Coubertin? E a oração do jogo?
- O Barão só é lembrado por quem perde. Já essa oração, nunca ouvi falar.
- Essa é interna nossa, mesmo. Todo mundo chama de grito de guerra, mas a gente trabalha muito a ideia de que o esporte não pode ser associado a uma batalha, nem o adversário pode ser visto como inimigo. 
- Então, os meninos mesmos resolveram dar esse nome. Antes de começar a partida, ali no banco, a gente reafirma nossos princípios. E o Educador recitou as diretrizes do Carrossel da Quebrada.
- Bonito demais, mas não se iluda: a regra que todo mundo segue é a do vale-tudo!
Pior que era mesmo. Confirmado por todos os “NÃOS” que recebemos ao pedirmos carona pra quem ia jogar contra a gente no dia seguinte.
Potencializado quando correu a notícia de um Município representado só por adolescentes da periferia, que estudavam em escola pública. E é de embrulhar o estômago porque é tudo velado: olhares, sorrisos, gestos, aqueles comentários que a gente pega no ar, tem certeza do teor, mas não tem como comprovar. E dentro da quadra então, enquanto corre o jogo: provocações e xingamentos pra desestabilizar, tirar o foco, cavar expulsão por agressão.
- Escaparam do zoológico?
- Que nada! Vieram no busão dos macaquinho...
- Por que não tão disputando a Taça das Favelas?
- São feras mesmo é no Jogo do Bicho!
Longas rodas de conversa à noite pra ajudar o pessoal a digerir, elaborar e responder sem perder a linha.
Mas, da mesma forma que a gente topa com aqueles que nos derrubam, também aparecem os que estendem a mão pra ajudar a gente a se levantar.
E todos os dias conseguimos o transporte.
A parte legal foi poder conhecer um monte de gente, de várias cidades: São José do Rio Preto, Taubaté, Registro, Piracicaba, São João da Boa Vista, Bauru. Diversidade. De sotaques, de cultura, de costumes. Um tour pelo Estado de São Paulo sem sair do ABC.
E o mais importante: convivendo, no ônibus, no caminho pras disputas e depois, no alojamento, com mais tempo pra conhecer o outro, preconceitos são desconstruídos.
E ainda tem o outro lado: conhecemos todo mundo, mas todo mundo conheceu a gente. E o bonde de Prudente fez fama.
E quem chegou sendo zoado, subestimado, inferiorizado, acabou ganhando o título simbólico de Delegação Simpatia da OLIMPAF.
E teve surpresa: fomos convidados pelo time do São Caetano pra assistir ao jogo deles contra o ABC de Natal, no estádio Anacleto Campanella, pela Série B do Brasileirão. E o próprio clube mandou um ônibus deles pra levar e trazer a gente. E ainda disponibilizaram as cadeiras cativas.
Pensa na alegria de receber um presente desses. Saímo do alojamento tudo pimpão, pagando de VIP. Será que tentaram compensar alguma coisa?
Mas viemo aqui pra jogar ou pra conversar? Pros dois, ué! Mas como já resenhamo bastante, bora contar como foi a campanha da molecada.
- Rapaz, mais um B.O. pra gente: tâmo sem caneleira. Esqueci a caixa em Prudente!
- Suave, a gente pega emprestado de quem não estiver jogando.
- Meu querido, que parte do “enfia a faca e torce” você ainda não entendeu? Ninguém vai emprestar material pra dar chance pro adversário jogar. Se alguém descobre que tâmo sem equipamento obrigatório de proteção, vaza pra arbitragem e nem começa o jogo.
- Caramba, agora a casa caiu! Não é possível que sofremo tanto pra chegar até aqui e vâmo acabar perdendo sem nem jogar...
- Ô, Professor! Tem um mercado aqui pertinho. Dois quarteirão. Vi no caminho, tá ligado? A parada é colar lá e arranjar umas caixa de papelão. Aí a gente faz as caneleira...
O Tá Ligado sempre tinha uma solução genial pras situações mais sem-saída. Tá certo que essa não era inédita. Afinal, quem nunca improvisou caneleira de papelão, né?
- E já compra uns elástico pra não escapar, né? Mete o meião por cima e já era!
- E reza pra ninguém perceber!
Os meninos perderam o primeiro jogo deles. As meninas também. Simplesmente não jogaram. Travaram. Nervosismo da estreia? Arquibancada lotada? Torcida contra? Pressão de jogo oficial, com juiz, mesa diretora, assinatura em súmula? Preconceito? Medo da caneleira aparecer? Só tudo isso! Quem não bugaria?
Mais papo reto depois da janta.
- Pessoal, tem sim uma pá de justificativa. E todas são válidas. Mas ninguém deu seu melhor hoje. Ninguém jogou nem metade do que é capaz. Todo mundo irreconhecível. Vocês vão mesmo se convencer de que são inferiores só porque tem gente falando que vocês são? Vão vestir o uniforme dos coitadinhos e voltar pra casa chorando?
- Professor, eu tava tão viajando que a menina armou o chute e eu virei de costas. Mas ela não chutou. Passou por mim e fuzilou a Alícia! E depois voltou pra tirar onda com a minha cara! Mas eu nunca mais vou virar! E ninguém mais vai passar fácil por mim! 
- Amanhã nós vâmo jogar de verdade, Professor!
Jogaram mesmo. E ganharam. Os dois times. E, no dia seguinte, ganharam de novo. No próximo, caixa! Engrenaram, recuperaram a confiança, elevaram a autoestima. Tavam orgulhosos de quem eram e de onde vieram. 
A estética dos jogos só refletia o astral dos meninos e meninas. Tavam jogando de beca, com categoria, amassando o adversário, com fome de gol, passando o trator mesmo. Resultados incontestáveis, com placares elásticos. E com as caneleiras milimetricamente ocultas.
No alojamento, clima melhor impossível. Zoeira correndo solta. Sobrou até pro Educador. Foi ligar pra esposa, do orelhão que ficava do outro lado da rua. Já existia celular em 2008, mas bastava um minuto de ligação interurbana pra zerar os créditos. Uma a cobrar saía bem mais em conta, com o cuidado de não alongar muito a conversa.
Voltou, abriu a porta do quarto. Silêncio absoluto.
- Todo mundo dormindo, já? Devem estar só o pó...
Deitou também. Levantou imediatamente.
- Mas que?
- Vai dormir com o cheirinho do pai...
- Perfume, seu moleque!
O Perfume ganhou o apelido porque exagerava demais na colônia. E resolveu trolar o Educador. “Impestiou” o travesseiro. Daquele tanto que faz a cabeça latejar na hora. Impossível dormir. E não teve um que não chorou de tanto rir.
- Tá certo, tá certo! Jogo duro o de hoje, não é, senhores? Exigiu bastante de todo mundo, né? Estão todos esgotados, né? Pois é, eu não corri hoje, não sofri desgaste físico, não estou com um pingo de sono. Portanto, fica meu profundo desejo de boa sorte aos que caírem nos braços de Morfeu...
Acordaram todos com maravilhosas esculturas na cabeça. Reluzentes capacetes de creme dental, decorados com toques de xampus de variadas tonalidades. Por acaso já teve a oportunidade de presenciar a obra-prima que os ingredientes provocam?
Cubra toda a superfície com uma camada generosa da pasta de dente e aos poucos, vá desenhando com um fiozinho de xampu ou condicionador, ou ambos. Fica style!
- Professor, só tenho uma coisa a dizer: não gostei!
- A vingança nunca é plena, mata a alma e envenena!
- Mas que é engraçada, ninguém pode negar!
Dia de Semi-Final.
Dois jogos duríssimos. Disputadíssimos. Equilíbrio total. Com efeito, decididos só no final. Os meninos ganharam com um gol marcado quando faltavam só dois minutos pra acabar. Fecharam a casinha e conseguiram segurar.
Com as meninas a emoção foi maior. Empate no tempo regulamentar. Decisão nos pênaltis. Contra o time para quem haviam perdido na primeira rodada. E aí, é loteria ou tem estratégia?
É pancada mesmo! Fecha o olho e pica o pé! Cobranças perfeitas, todas estufaram a rede. As adversárias sentiram a fúria. Tremeram na base. Titubearam, hesitaram. Mandaram uma na trave e outra na lua! 
Só alegria, os dois times na final. Bora tomar um banho, voltar pra Santo André e descansar tudo e mais tudo pra jogar as finais amanhã. Só que não!
- Ei, Prudente! Vão embora não! É que houve um equívoco no contrato da arbitragem do futsal feminino. Erraram a data de encerramento. Os juízes só trabalham até o fim do dia. Então, a final foi antecipada pra hoje. Daqui a duas horas.
- Impossível! As meninas não tem a menor condição de jogar, ainda tão com a adrenalina dos pênaltis lá nas alturas. Os músculos ainda tão pulando. Não tem emocional, nem físico.
- Bom, então vai ser considerado desistência. Jundiaí vai ser declarado campeão e Prudente vice.
- E se Jundiaí também se recusar a jogar? Medalha de ouro pra todo mundo...
- Eles querem jogar.
- Então Prudente também vai jogar!
Só podia ser a Witney. Exercia liderança no time. Competitiva ao extremo. Jogava demais. Tava morrendo, mas não ia aceitar entregar. Sem jogar, de jeito nenhum. E todas as meninas bateram o pé pra entrar em quadra.
- Então vamo combinar: comecem o jogo e, se eu perceber que só uma de vocês tá chegando no limite do aceitável, a gente para na hora e pega o rumo de casa.
Com cinco minutos de jogo, já tavam perdendo de dois. E não é que buscaram aquele restinho de combustível no fundo do tanque? E o primeiro tempo terminou empatado. Mas faltou perna no segundo. Não deu pra segurar. Levaram mais dois e ganharam a medalha de prata mais merecida do mundo.
- Certeza que se fosse amanhã, a gente ia passear!
No dia seguinte rolou a final dos meninos. Contra Santos. Só que não!
Aos dois minutos, uma dividida nervosa: perna com perna. Ninguém lesionado, mas uma caneleira de papelão planou pelos ares. Jogo interrompido. Constatação que todos os atletas de Presidente Prudente estavam em quadra sem equipamento de proteção.
- Caramba, ninguém empresta caneleira pra gente?
- Os reservas do time deles! Podiam passar as deles pra nós! Tão no banco mesmo. Quando forem entrar, pegam a caneleira de quem estiver saindo.
Pensa se toparam. Tá no regulamento. Todos os jogadores, titulares e reservas, devem utilizar o equipamento de proteção.
Fim do jogo que nem bem começou. Mais uma prata. Essa carregada de indignação.
Mas a cerimônia de premiação revelou os verdadeiros campeões. Quando o time de Prudente foi chamado pra subir no pódio e receber as medalhas, o ginásio veio abaixo. Todo mundo em pé, aplaudindo, assobiando, gritando. E chorando. 
Três minutos ensurdecedores pra qualquer um. Pra gente, o mais lindo hino de reconhecimento a quem chegou com seu próprio esforço e só não ganhou porque foi impedido de tentar.
Pros “vencedores oficiais”, também foram três minutos. De vaias diretamente proporcionais. Saíram todos de cabeça baixa, direto pro vestiário. Comemorar o quê? Com quem?
O tronco-móvel não deu conserto. O valor do reparo era maior que o do próprio veículo. O SESI fretou um ônibus pra trazer a gente de volta. Zero bala, com ar condicionado e tudo!
- Vai chegar dentro de três horas.
- A gente não camelou essa estrada toda pra jogar? Bora bater um rachão, todo mundo? 
- Os mano e as mina, mistão!
- Pega no gol pra gente, Professor?
- Então todo mundo aqui pra oração do jogo!
Juntos no três. Um, dois, três:
Eu vou jogar porque eu gosto
Eu vou jogar seguindo as regras
Eu vou fazer o meu melhor
Eu vou correr pelos meus companheiros
Eu vou respeitar meus adversários
Eu vou comemorar a vitória
Eu vou aprender com a derrota
A evolução é o troféu que me premia
Minha medalha é ser melhor a cada dia
Sou vencedor no campeonato da alegria
Porque eu tô aqui é pra ser feliz!
 


Comentários

  1. Gostei do texto. Temos que aprender a conviver com os perrengues que se apresentam no dia a dia.

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  2. Kkkkkkkk muito bom. Essa eu conheço direto do "contadô". Adorei. Viajei na imaginação no momento da caneleira pelos ares e em câmera lenta kkkkkkkk. Q sufoco, q decepção. Q conteúdo, pra hj publicar em prosa toda situação 👏👏👏👏👏

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