E aí, já escolheu seus deputados?
Semana passada, tava conversando com meu amigo sueco, o Berg. Ele trabalha numa ONG que reverte uma porcentagem do crédito de carbono, comprado do Brasil pelas empresas de lá, pra reinjetar em projetos sociais e educativos daqui. Louco, né?
Fala português fluente, sempre atualizado nas gírias, curte futebol (fala até que foi a nossa seleção que copiou a camisa amarela e o short azul do uniforme da seleção deles em 58), aprecia uma panceta pururucada acompanhada de uma gelada. Vem pra cá pelo menos duas vezes por ano. Só falta naturalizar.
A gente ficou amigo numa dessas, quando ele veio conhecer o projeto onde eu trabalhava. Começamo a trocar ideia, tamo na resenha até hoje. Difícil passar uma semana sem um bom papo.
Perguntou sobre as eleições. Não se conforma que a gente se mate por causa de polarização pra escolher presidente.
- Se fossem parlamentaristas, vocês iam se desgastar bem menos...
- Então, rapaz! A gente aqui só dá importância pro Poder Executivo. Ainda tamo com aquela ilusão do Salvador da Pátria. É o Super-Prefeito que vai deixar a cidade um brinco, o Super-Governador que vai zerar as dívidas do Estado e o Super-Presidente, que vai acabar com a corrupção de vez...
- Mas e o pessoal que faz as leis? Não são eles os mais importantes?
- Vixi, meu querido! Nossa democracia ainda tá engatinhando! Precisamo amadurecer bastante pra chegar nesse nível de consciência. A gente também tem legislativo nas três esferas: nos Municípios, os vereadores; nos Estados, são os deputados estaduais; e na União, são os deputados federais, que representam o povo e os senadores, que representam os Estados.
- Até os Estados consegui entender, mas essa União aí já complicou. E tem duas casas que fazem leis no mesmo lugar? É isso?
- É isso mesmo! O nome completo do nosso país é República Federativa do Brasil. É formada pelos Estados-Membros, que são divididos em Municípios. A União Federal é a entidade que possui o poder central desse combo e representa o país na gringa. São os três pilares que sustentam a Federação.
- E tem duas fábricas de leis, mesmo! A Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Formam o Congresso Nacional. A primeira tem 513 integrantes. Como os deputados são os representantes do povo, o número de eleitos por cada Estado não é igual, sendo definido de forma proporcional à população de cada um.
- Ah, então Estado que tem mais gente elege mais deputado...
- Exatamente! São Paulo, por exemplo, ocupa 70 cadeiras na Câmara, porque tem mais de 40 milhões de habitantes. Piauí e Espírito Santo tem direito só a 10 vagas, por terem populações bem menores.
- Já no Senado são três representantes por Estado, independentemente do tamanho da população. O critério adotado aqui é a igualdade entre os integrantes da Federação.
- Esse é o nosso Poder Legislativo. Câmara e Senado definem as regras do jogo. O Poder Executivo é responsável pelas ações administrativas, que devem ser efetivadas com estrita observância à legislação. É o tão famoso Princípio da Legalidade!
- Mas e se o Poder Executivo fizer alguma coisa desrespeitando a lei?
- Aí entra em campo um terceiro Poder: o Judiciário. É composto pelos juízes e tribunais. São eles que decidem os conflitos de interesses e julgam se as normas foram ou não cumpridas.
- Legislativo, Executivo e Judiciário: são os três pilares do Estado Democrático de Direito.
- Agora é que começam as graçolas. Tá lá na Constituição que os três poderes são independentes, mas devem ser harmônicos entre si. E também existe um tipo de sistema, chamado de freios e contrapesos, que prevê, em certos casos, a possibilidade de fiscalizações, limitações e até interferências de um poder em outro, justamente pra impedir abusos e garantir as liberdades de cada um e o pleno exercício de suas funções.
- Olha só um exemplo: os ministros do Supremo Tribunal Federal, a última instância do Poder Judiciário, são indicados pelo Presidente da República, que é o chefe do Poder Executivo, mas devem passar por uma prova no Senado Federal, do Poder Legislativo, pra poderem assumir seus cargos.
- Quer mais um? Esse é de intervenção direta: no caso de crime de responsabilidade cometido pelo Presidente da República, a Câmara dos Deputados vota sobre o afastamento do acusado do cargo até o Senado julgar o impeachment dele. É Poder Legislativo pagando de Judiciário, mas tudo valendo porque previsto pela Constituição. Regra é regra!
- Eita, do jeito que você tá falando era pra ser tudo perfeito. Por que tanta briga, então?
- É um contrassenso, né? Mas não é tão difícil entender: o problema não é a divisão dos poderes, é a dificuldade dos agentes públicos de acatar as limitações impostas ao Poder do qual fazem parte.
- E tem uma parada ainda mais nervosa: o sistema utilizado pra se definir quem são os eleitos.
- Mas como assim? Os eleitos não são os mais votados?
- Pro Poder Executivo, sim. No Legislativo, os senadores também são eleitos pelo voto majoritário. Mas pra deputados federais, estaduais e vereadores o critério é bem diferentão. É uma conta bem louca, bem complicada, muito pouco falada, quase nunca questionada, mas quando compreendida...
- Agora fiquei curioso! Como funciona? Por que ninguém explica?
- Saca só como acontece e aí tira suas conclusões: o ponto de partida é o tal do quociente eleitoral. É o resultado da divisão do número de votos válidos pelo número de vagas na Câmara Federal e nas Câmaras Legislativas.
- Vamo usar o Estado de São Paulo, que tem cerca de 21 milhões de votos válidos e 70 vagas pra serem preenchidas na Câmara dos Deputados.
- Precisa de 300.000 votos pra eleger um deputado!
- Mas aí tem que somar os votos que cada partido ou coligação recebeu pra poder dizer quantos candidatos daquele partido ou coligação serão os eleitos.
- Muito enrolado isso, tá louco...
- Vamo tentar clarear com números. Simulação bem simples pra ilustrar.
Partido A: 2.100.000 votos - elege 7 candidatos.
Partido B: 1.500.000 votos - elege 5 candidatos.
Coligação C: 3.600.000 votos - elege 12 candidatos.
Coligação D: 900.000 votos - elege 3 candidatos.
Partido E: 250.000 votos - não elege nenhum candidato, não chegou ao mínimo de 300.000 votos.
- Ué, conforme a matemática, tá tudo certo! Não é lá o ideal, mas é proporcional. Os partidos e coligações que conseguem mais votos são os que elegem o maior número de candidatos.
- Aí é que o bicho pega! Quando a gente vai pros votos que cada candidato recebe individualmente, podem acontecer injustiças enormes. Olha só o que pode rolar e rola na real.
- Lembra do Partido A, com 2.100.000 votos, elegendo sete deputados? Imagina que um só candidato desse partido conseguiu 2.000.000 de votos. Parabéns pra ele! Arrebentou, né? O absurdo é que os outros seis deputados do partido, que juntos conseguiram só 100.000 votos, foram eleitos na aba desse “campeão de urna”.
- Ah, tô começando a entender...
- Agora o outro lado: lá no Partido E, um candidato conseguiu sozinho 200.000 votos, mas não foi eleito, porque o partido não alcançou o quociente eleitoral. Precisava de 300.000 votos, mas só teve 250.000 com a soma dos votos de todos os seus candidatos.
- Agora caiu a ficha de vez: os seis candidatos do Partido A só conseguiram entrar porque aproveitaram o caminhão de votos de um único candidato e o coitadinho do Partido E não elegeu ninguém, mesmo tendo um candidato que recebeu 200.000. Tá errado isso! É sacanagem!
- Pior! Não é sacanagem só com o candidato, né? É também com os 200.000 cidadãos que votaram no cara e vão ficar sem a representação dele lá na Câmara. E a vaga dele acabou sendo ocupada por alguém que teve muito menos votos que ele...
- Olha que loucura: em 2018, só 27 deputados alcançaram ou ultrapassaram o quociente eleitoral. No popular: ganharam a vaga com seus próprios votos, sem depender dos votos do partido ou coligação. Os outros 486 foram puxados pelos votos dados aos outros candidatos do mesmo bonde deles.
- Que palhaçada!
- Literalmente, meu amigo! A gente tem um palhaço aqui, o Perereca, que mostra com perfeição como o sistema funciona. Em 2010, ele teve 1.350.000 votos. Ajudou a eleger mais quatro coleguinhas. Caiu um pouco em 2014, pra 1.000.000 de votos, mas ainda assim puxou mais dois. E, em 2018, desbarrancou pra 445.000 votos. Aí, deu pra garantir só a cadeira dele mesmo.
- Que coisa louca! O cidadão vota em um candidato e acaba colaborando pra eleger outros que ele nem faz ideia de quem sejam...
- Quando vão ver, descobrem que participaram ativamente na eleição de políticos profissionais, que tão sempre apoiando quem tá no governo - não tão nem aí pra ideologia - e tão sempre envolvidos em escândalos de roubalheira grande: Wladimir da Orla Sobrinho, Ronaldo Franklin, Miro Figueira, Edvaldo Pistolão...
- Que pilantras!
- É assim que os tubarões fazem: usam figuras famosas, atores, jogadores de futebol, cantores, tudo que é celebridade pra levar eles pra dentro da Câmara e manter os que já tavam lá. O Palhaço Perereca é só um dos fantoches. E a galera vota, achando que tá causando o maior protesto!
- Mas nessa última ele já não deu lucro, né? Não puxou ninguém...
- Por isso que é sempre necessário renovar o elenco. É igual novela. Mudam os personagens pra contar praticamente as mesmas histórias. E tudo indica que a bola da vez pra essa eleição vai ser o Tigre de Bengala!
- Quem é esse?
- Ah, Berg! Vamo deixar baixo essa...
- O que pega é que os safados vão se perpetuando no Poder mais poderoso da República. E só criam ou mudam leis quando é conveniente pra levarem uma vantagem ou necessário pra proteger eles mesmos.
- E como faz pra quebrar isso?
- Só com trabalho de formiguinha, com ações contínuas, com planejamento a longo prazo e jogando sem desrespeitar as regras.
- E todo mundo sabe o que tem que fazer: investir em educação pra formar cidadãos conscientes da própria realidade, conhecedores dos direitos que tão sendo negados a eles, pra poderem exigir que sejam respeitados e efetivados, pra aí terem oportunidade de entrar no corre pra ter uma vida melhor.
- Mas não são os deputados e senadores que decidem quanto vai pra cada área? Eles nunca vão mandar recursos pra bancar ações que lá na frente vão tirar eles do poder!
- Por isso que a solução é sempre eleger gente diferente, com propostas sérias e adequadas pra cada problema, mas realistas, que possam ser implantadas e atingir os resultados esperados.
- Tem alguma na prática, pra eu poder entender melhor?
- O próprio sistema eleitoral! Ninguém fala em mudar os critérios de eleição do Legislativo. Nunca vi um candidato defendendo o voto majoritário: os mais votados se elegem e pronto. Não tem ninguém sendo alavancado com voto de outro...
- Claro que vamo continuar seguindo a proporção do número de eleitos por Estado, mas cada um tem que ser dividido em regiões, pra que cada uma possa ter pelo menos um representante. É o tal do voto distrital. Garantia de que os interesses locais vão ser defendidos na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas.
- Tá aí, gostei! Tem outra?
- Reforma tributária! A gente tem que mudar a forma de cobrança dos impostos. Hoje o grosso da arrecadação é o consumo. Injusto demais. Rico e pobre no mercado pagam o mesmo valor de imposto ao comprarem qualquer produto.
- O lance é jogar o foco na renda: quem ganha mais contribui com mais na vaquinha pública. E quem é rico ao cubo, recolhe ao cubo pra caixinha. Imposto baixo pra todo mundo nos itens da cesta básica, alíquotas progressivas sobre os ganhos. Triste que também é raro alguém levantando essa bandeira...
- É muito esquisito! Não era pra ser moleza pra qualquer um se eleger com essas ideias? É só se candidatar que o povo compra...
- E você não acha que já pensei forte nisso? Mas pra poder concorrer, o cidadão tem que ser filiado a um partido. E, sinceramente, não tenho estômago pra colar em nenhum desses aí. Então, se é pra fazer, tem que fazer direito: bora começar um partido do zero!
- Show de bola! Já tô empolgando aqui...
- Estatuto minutado, diretrizes definidas, objetivos traçados, metodologias especificadas. Com sigla e tudo: PRESSA!
- O partido vai chamar PRESSA?
- Partido Radical pela Educação, Seguridade Social e Ambiente. Porque que quem tem PRESSA, muda!
- Caramba! Até slogan! Mas preciso te falar que tem uma coisa que senti falta: cadê a saúde aí no nome do seu partido? Seguridade é mais importante?
- É mais uma que quase ninguém fala sobre e a gente tem que esclarecer. A Seguridade Social é formada por três pilares: Saúde, Previdência e Assistência Social. Tá lá na Constituição!
- Cara, tá tudo pronto! Tá esperando o quê pra fundar o PRESSA?
- Aí é que a casa cai, meu chapa! Também pensaram nisso: pra conseguir registrar um partido, é preciso comprovar o apoio, num período de dois anos, de eleitores correspondentes a pelo menos 0,5% dos votos dados na última eleição pra Câmara dos Deputados, distribuídos, por dois terços ou mais dos Estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado que tenha votado em cada um deles.
- PQP! Não acredito! Os safados que já tavam lá montaram um esquema pra não sair nunca e outro pra ser missão impossível pra alguém diferente deles entrar!
- Tá pensando o quê, abestado? Esse país realmente não foi feito pra amadores!
- Mas a gente continua remando, insistindo, com resiliência e com fé, invocando e se sustentando, dentre todos os pilares, nos três mais poderosos: o Pai, o Filho e o Espírito Santo!
Uma aula de como exercer o direito democrático.
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